ARQUIVO ABERTO
memórias que viram histórias
Renée Gumiel, um caso de amor
São Paulo, 2006
Vi no nosso encontro a chance de ouvir sua história e um pouco da história da dança na voz de quem a viveu e continuava na ativa. Lancei-me ao desafio de criar uma homenagem a ela em vídeo, que pudesse contar um pouco de sua carreira. E também para eu aprender com ela uma coreografia de outra ordem, costurada por suas lembranças e pelo meu olhar.
Nosso primeiro encontro foi em fevereiro de 2003, na casa dela. Sua imagem -marcante- era forte e frágil, misteriosa, simpática, mas dura. Ofereceu-me uma taça de vinho e quis saber como eu chegara a ela, fazendo muito mais perguntas do que as respondendo -quem era eu, por que queria fazer o documentário, quem faria o vídeo comigo-, enquanto eu buscava um equilíbrio para mudar de lado e entender o fio do seu pensamento.
Foi um mês de muitos encontros, sem que ela desse muitas pistas nem liberasse imagens e recortes de jornais de sua trajetória. Boa parte do tempo falávamos de dança, e Renée me desafiava com seu jeito irrequieto e provocante.
Pouco a pouco, passou a me falar sobre a dança moderna e sua chegada ao Brasil, na década de 60. Lembranças soltas, que aos poucos foram se juntando num quebra-cabeça, ordenado por traços da história da dança paulista. Então surgiram caixas e caixas com recordações, livros, vídeos, recortes, fotos, programas. Renée passava conceitos, lia seus escritos, contava casos -e assim fomos construindo uma amizade.
Em outubro, com outros artistas, organizei no aniversário dela uma homenagem: um espetáculo no Sesc Vila Mariana, sob coordenação de Susana Yamauchi. Exibimos um pequeno vídeo sobre sua trajetória, que fiz com Sérgio Roizenblit e Jorge Grinspum. Foi o início da minha carreira como documentarista de dança.
Desde então passamos todos os seus aniversários juntas. Íamos a espetáculos, eu sentia sua energia e aprendia com ela. Renée nesse tempo atuava no Teatro Oficina e seguia desafiando padrões estabelecidos. Mantinha o culto à sensualidade e ao prazer. Sua autoimagem desvelava o quanto para ela o presente era vivo: "Tenho braços, pernas e pescoço looongos... e não me descuido" (ela era miúda, franzina). Reclamava se me via sem batom: "Maquiar-me é cuidar de mim para o outro".
Renée sempre me surpreendia. Numa noite, em 2006, fomos assistir "Mapplethorpe", um solo de Ismael Ivo, no Sesc Consolação. Era uma noite clara, e ela havia cuidado em detalhes de sua roupa, trocando de modelito e perguntando o que eu achava. Por fim, escolheu um vestido preto bordado com beija-flores que ganhara de Ronaldo Fraga.
Estávamos as duas curiosas para ver como Ivo havia transformado em dança seu encontro com o grande fotógrafo americano que dava nome ao espetáculo. A apresentação nos marcou muito pelas cenas fortes, quase fotografias em movimento. Saímos devagar do teatro, pensativas; só pouco a pouco começamos a comentar o que tínhamos visto. Várias pessoas cruzavam nosso caminho. De repente ela parou, me interrompeu e perguntou: "Você viu esse moço? Ele estava olhando para você ou para mim?"
"Pra mim? Não...", respondi.
"Bem que eu percebi. Ele estava me paquerando..."
Sorri e procurei ver o moço de quem falava. Ele parara mesmo no meio da rua, olhando para minha amiga. Passamos depois por ele, com Renée jogando charme.
Essa era Renée, com mais de 90 anos. Ninguém mais viva do que ela, naquela hora e para sempre.
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