João Paulo
Estado de MInas : 29/12/2012
La mujer parada, escultura de Fernando Botero: lição da arte à "neura" pós-moderna |
O que poderia ser apenas um episódio corriqueiro e banal do comportamento ditado pelo consumo, ainda que perigoso e portador de infelicidade, o exagero em relação ao trato com o físico se revela muito mais simbólico e significativo do que sugere o primeiro olhar. Nosso tempo está trocando a saúde pela boa forma, a liberdade pela autocoerção, o prazer real pelas expectativas de coleta de sensações, a convivência pelo isolamento. “O corpo pós-moderno é, antes de tudo, um receptor de sensações”, alertou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Com isso, ele desvendou a grande equação sobre a qual se amparam as disciplinas corporais e seus sucedâneos: a capacidade de traduzir a felicidade em matéria de consumo. O corpo passa a ser moldado de acordo com os interesses do mercado de sensações.
Na verdade, os sinais dessa inversão de valores (sai o corpo livre e em seu lugar entra um organismo disposto à disciplina exterior) estão por todos os lados. O primeiro deles se dá em relação ao tempo. Hoje, todo mundo quer ter tempo livre para fazer ginástica, atividade física ou, sem metáfora, malhar. Cultivar o corpo com formas violentas de atividade repetitiva se tornou um dos objetivos da vida. As pessoas não se queixam de falta de tempo para ler um livro, namorar, jogar bola, meditar, ficar à toa ou procurar os amigos. Mas se sentem em dívida com seu corpo. O maior dos bens, o tempo, é hoje encarado na coluna dos débitos, de nossos defeitos de alma, de nosso complacente modo de existir aquém das expectativas dos vencedores.
Outro sinal que ronda as consciências é o excesso de informação interessada em torno do corpo e de suas medidas. Privatizado pela indústria, o organismo humano se torna objeto de duplo vínculo: ele tem tudo o que precisamos para alcançar a felicidade, por um lado; e é o sinal de nossas incapacidades, por outro. Somos plenos e falhos. A indústria da boa forma nos lembra a toda hora desses dois limites. Programas de televisão alardeiam formas de emagrecer (sempre com sacrifício, é claro), humilham as pessoas para depois dar a elas a chance de redenção, propagandeiam fórmulas infalíveis, vendem produtos, inflam a frustração.
A saga do jogador Ronaldo para emagrecer foi acompanhada em horário nobre, aos domingos, com direito a repetições durante a semana e vendida como ação de utilidade pública, um exemplo moral. Outro programa de televisão ameaça as pessoas com a morte próxima e, depois do esforço de algumas semanas, com dietas, exercícios e exames de laboratório, premia o personagem com alguns anos de vida a mais. Na mesma linha, um concurso de meninas dispostas a entrar na profissão de modelo usa com desassombro categorias como altura e peso como se se tratasse de juízos humanos. Ter menos de 180 centímetros ou pesar alguns gramas a mais que um esqueleto é condenação para as jovens. Da mesma forma, ter esses atributos é uma abertura para o futuro brilhante feito de nada mais que levar o corpo de um lado a outro de um tablado, com olhar metafisicamente perdido no horizonte.
As listas de livros mais vendidos ou de reportagens de revistas semanais também são atravessadas por essa situação de ambiguidade, que promete o prazer e cobra em troca a obediência de padrões. Sempre que a política está em baixa ou se torna repetitiva e chata demais – o que acontece cada vez com mais regularidade –, entram em cena pautas de reportagens sobre emagrecimento e gastronomia. De um lado, a confirmação de nossa incapacidade para alcançar a forma ideal; de outro, o estímulo a prazeres corporais diretos cada vez mais sofisticados e metidos à besta. Essa esquizofrenia é constitutiva de um tempo que depois de privatizar o que era público resolveu tornar preocupação pública o que há de mais privado no indivíduo: cabeça, corpo e membros.
Quando Foucault criou o conceito de biopoder, não imaginava aonde poderia chegar a capacidade de subjugar o corpo aos ditames da política e da economia. Mais que de elementos exteriores de opressão, o corpo sofre do próprio sujeito cobranças impossíveis de serem cumpridas. Os mecanismos de consumo, que antes tangenciavam o corpo, hoje se realizam na própria matéria. Não precisamos ser magros e atraentes para sermos felizes: a magreza e o poder de atração são a felicidade em si. Mesmo que isso signifique trocar todo o nosso repertório de méritos pelo mais tangível e singelo deles.
O corpo pós-moderno, dessa forma, não é o corpo saudável. Saúde é um signo que se define pelas possibilidades que inaugura. As pessoas com saúde estão livres para exercer todas as dimensões de sua vida: a criatividade, o amor, o prazer, o trabalho, a espiritualidade. A saúde, na concepção pós-moderna, não é uma condição de possibilidade, mas um atributo. Assim, no reino da boa forma, interessa que o corpo seja estimulável, capaz de absorver as cotas de prazer que podemos vir a possuir. Quanto mais “saudável”, mais eficiente o corpo pós-moderno será na tarefa de fruição do gozo. Por isso, a obsessão permanente em termos de medidas e comparações. Se tanto esforço é despendido para alcançar, por exemplo, o prazer sensual ou gastronômico, é preciso turbinar o desejo com medicamentos e exotismos para diferenciar as pessoas especiais dos comuns dos mortais (já que todos transam e comem). O sexo e a alimentação do homem saudável pós-moderno precisam ser maiores, sem o que ele se sentiria burlado em seus investimentos de tempo e dinheiro.
Não é um acaso que as drogas da juventude de hoje sejam destinadas a ampliar a capacidade física, da mesma forma que nos anos 1960 se buscava abrir as sendas da percepção. É sintomático que o que já foi amor livre hoje seja o descompromisso com o outro. É mais que simbólico que um corpo, que, para outras gerações, era belo por ser natural (sem aumentos artificiais e excesso de depilação), atualmente seja definido como “sarado”, com tudo de retificador e objetificador que a palavra carrega.
Política aeróbica Todo exagero evidencia uma franja da realidade. É claro que homens e mulheres estão descuidados da saúde e teriam muito a ganhar com atividade física e boa alimentação. Esse é o lado mais arejado da questão. Mas há outro, igualmente importante, que vem sendo deixado de lado em favor do que é mais visível e operativo. Podemos mudar algumas circunstâncias do cotidiano, sobretudo as que dizem respeito a atitudes individuais, mas a coisa se torna muito mais difícil quando se trata de temas mais amplos. O corpo também é político.
Assim, as grandes ações em nome da saúde – pelas quais nenhuma celebridade ainda se dispôs a comprar briga – estão localizadas na forma de produção de alimentos, com o uso abusivo de venenos; nas péssimas condições laborais da maioria dos trabalhadores; na carga de propaganda de substâncias danosas ao bem-estar, como o arsenal de porcarias coloridas destinadas às crianças; no estímulo ao consumo de medicamentos por conta própria; na falta de espaços de lazer de qualidade em todos os quadrantes das cidades; no preconceito que aponta o dedo para as singularidades como se elas fossem desvios, o que atinge a autoestima e, muitas vezes, as oportunidades de trabalho, escondidas sob a falsa atribuição da “boa aparência”, um tipo muito peculiar de racismo à brasileira.
O ano que começa merece de todos atenção com a saúde e com o corpo. É legítimo que todos queiram se sentir bem para que possam fazer da vida o que merece ser feito. Mas é sempre bom ter em mente que nosso corpo não é espelho da alma nem a carcaça de um coletor de estímulos negociados no mercado. Somos muito mais que mercadorias e insatisfação. Saúde para todos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário