sábado, 29 de dezembro de 2012

Quando alguém se vai - Beth Fleury‏


O professor Milton Santos e o escritor Alcione Araújo, inteligências voltadas para o destino do Brasil, deixaram o legado da coragem a seu país 

Beth Fleury
Estado de Minas: 29/12/2012 
Dois homens impressionantes, duas velas acesas que um dia se apagaram. Um dia, não. Dois dias. Duas velas que se apagaram em momentos diversos – no espaço talvez de 15 anos de diferença. Mas a morte de meu amigo Alcione Araújo, dramaturgo mineiro, roteirista de cinema, romancista e cronista do jornal Estado de Minas, lembrou-me a imagem das velas acesas.

Bachelard, filósofo francês, usa muito bem essa metáfora ao falar do raciocínio profundo e analítico daquelas mentes que nos instigam a pensar o mundo como velas acesas. Estes dois homens marcantes estiveram de várias maneiras ligados ao destino de todos os brasileiros: Alcione Araújo e o grande professor baiano Milton Santos, geógrafo, ambientalista, negro, intelectual e pensador das grandes causas. 

Ambos sonharam as utopias da humanidade, mesmo sem ter dormido no sleeping bag, como diz a canção de Gil. Sem dúvida, sonharam. Mas certamente sem adotar os sleeping bags (colchões de dormir ao relento muito usados em happennigs undergrounds do Farol da Barra e outras platitudes no Brasil ao longo dos anos 1970). Não. Esses dois homens jamais cruzariam umbrais da contracultura. Tinham em comum o jeito contido de certos intelectuais que pensaram as grandes causas, viveram e lutaram por elas. Nada de alegrias expansivas, sorrisos muito rasgados, nada de vozes alteradas. Com eles, o raciocínio e a palavra caminhavam juntos a serviço da profundidade e da crueza. Doesse ou não doesse – e a crueza cortava primeiro na própria carne antes de chegar até nós. 

De voz profunda e forte, Alcione não fazia concessões à alegria. Isso nos idos dos anos 1970, depois de já ter passado por detenção política que deixou muitos companheiros seus marcados como ele mesmo – de forma indelével e concisa. Não anunciada, mas permanente. Já o professor Milton Santos sabia ser cortante, de uma inteligência capaz de traduzir para grandes plateias heterogêneas os jogos das organizações internacionais na luta pelo lucro a despeito da saúde e do meio ambiente. Mas era capaz de fazer tudo isso levando um discurso carregado de doçura – doçura africana, por certo. 

Por que a morte de Alcione Araújo, ocorrida em novembro, traz de volta a história desses dois homens? O que unia os dois intelectuais brasileiros, embora, para o grande público que os conheceu, talvez não houvesse elo entre as duas experiências? A imagem deles me veio à lembrança quando soube do infarto fulminante que Alcione sofreu ao fim de uma visita a Belo Horizonte. Pensei na tristeza que deviam estar sentindo os amigos do antigo grupo de teatro do Senac de Belo Horizonte – atualmente, todos atores conhecidos e reconhecidos no Rio de Janeiro: José Mayer, sua mulher, Vera Fajardo, e Antônio Grassi, atual presidente da Funarte.

Lembrei-me do sucesso dos espetáculos que estreavam no antigo Teatro Senac da Rua Tupinambás, numa Belo Horizonte que agora parece tão distanciada de nós. Foi uma jogada inteligente dos meninos naquele momento e naquela BH precária em termos de arte e cultura, onde tudo se resumia ao Teatro Marília e ao velho Chico Nunes, no Parque Municipal. Montagens com direção inovadora e, ao mesmo tempo, apelo à diversão e ao espetáculo – inovação que “deu certo” numa época em que viver de teatro era ficção. Mayer ensinava francês; Alcione era professor na Faculdade de Engenharia da UFMG; Grassi, estudante de sociologia na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, a Fafich. 

Encravado em uma região popular e pouco afeita à diversão mais cultural, aquele teatro se propunha a ser não apenas político ou engajado do modo que todos nós sabíamos ser e fazer. Propunha-se a interagir com o grande público, a ter boas bilheterias e atender apelos do público por diversão. Mas uma diversão inteligente, crítica e, sobretudo, “diversão divertida”. Ou seja, inteligência que não rimava com a negligência do prazer que a arte pode proporcionar a grandes plateias – sem a qual, inclusive, não há grandes plateias. Numa época em que a gente lutava contra a ditadura com diligência e aplicação e nos exigíamos isso como carteirinha de pertencimento a um certo grupo de pessoas que, a despeito de prisões, torturas, exílios e censura, seguia resistindo por democracia.

Naquela época, achávamos que devíamos nos manifestar conforme certo manual de procedimento que nos aproximava de nossos companheiros e nos identificava na grande noite escura. Mesmo assim, Mayer, Alcione e Grassi nos ensinavam que não havia nada de errado em oferecer teatro que divertisse o público, desse bilheteria razoável, fizesse pensar e, de quebra, pudesse manter o grupo unido pela sobrevivência da arte.

Bem, o que ligava aqueles dois homens dos quais falava no início deste artigo? Em dado momento de sua carreira no Rio de Janeiro dos anos 1990, Alcione Araújo preparava para enviar à editora os originais de seu romance Nem todo o oceano. Naquele momento, em que já nos alcançavam as sombras (ou as sobras?) do fenômeno econômico, político e cultural denominado globalização, intelectuais e pensadores se organizavam e discutiam tentando compreender como se movia esse fenômeno, como ele operava dentro e fora do Estado-nação. Alcione havia organizado uma série de debates no Teatro Casa Grande, no Leblon, dando seguimento aos memoráveis encontros que ali haviam ocorrido nos anos 1970.

Pouco antes disso, na Fundação Oswaldo Cruz, onde trabalho até hoje, pesquisadores e professores, preocupados com o mesmo tema, organizaram importante seminário internacional sobre questões envolvendo saúde e meio ambiente. A conferência de encerramento foi proferida pelo professor Milton Santos, experiente intelectual com trânsito e visibilidade no cenário científico e político do Primeiro Mundo. Todos empenhados em deslindar o que a “nuvem” da globalização nos trazia. Várias pessoas pediram a palavra ao final da conferência do professor.

A última pessoa a se manifestar no auditório lotado da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz foi uma mulher, poetisa, que declamou seu poema sobre a globalização. Não por acaso intitulado “Saaras”. O professor se emociona. O público aplaude. Milton Santos pede (e ganha) uma cópia. 

Semanas depois, o mesmo professor participava da série de conferências que Alcione e outros organizaram no Planetário da Gávea. Ao final, assoberbado e rodeado de amigos e curiosos, Alcione é abraçado pela amiga, a poetisa daquele seminário internacional. Ela lhe segreda que pensa igualzinho ao professor Milton Santos. Cético por natureza, Alcione balança a cabeça e lhe devolve um sorriso irônico. 

Algumas semanas se passam, Milton Santos falece. A poetisa pensa na tristeza do dramaturgo pela partida do velho professor. Telefona ao amigo cético, que se divertira com a história de sua amiga achar que um PhD da Sorbonne pudesse se interessar pelo que uma brasileira pensava de suas teses sobre a globalização. Ela o conforta, conta a história de sua declamação e da emoção do professor. E declama novamente o poema, agora confortando o dramaturgo. Ele se emociona e lhe pede que repita aqueles versos. “Mesmo que eu bebesse/ todo o oceano/ e seu sal/ inventasse/ Saaras pelo meu corpo// Mesmo que eu/ empunhasse /aquela funda de Davi/ ainda assim,/quando o grande mar em desordem/ tu avistasses/de mim duvidarias/ e me esquecerias.// Mesmo que de ti/ eu resguardasse/ o vaso (oculto)/ das perguntas/desenhadas todas /feito hieróglifos/nos rostos das pessoas// Mesmo que eu pensasse/ mas não te dissesse/ tu me perguntarias/aquilo que conheces/ e tu me dirias/ que há tanto sal/ que há tanto sal/ que há tanto sal/ feito quem não sabe!”

Ao final do telefonema, Alcione comenta de seu livro novo, que está preparando para enviar à editora. O livro é publicado. A poetisa o lê com a emoção do professor e com a emoção do dramaturgo, agora ficcionista. O título é uma resposta aos primeiros versos daquele poema. “Mesmo que eu bebesse/ todo o oceano”, disse a poetisa. “Nem todo o oceano”, respondeu-lhe o dramaturgo, agora ficcionista.


Aquele foi o último dia em que a poetisa falou com o dramaturgo.
Enfim, são memórias que nos assaltam quando alguém se vai.     


Beth Fleury é jornalista, poetisa e mestranda de sociologia 
na UFMG. Em 2005, publicou o poema “Saaras” em Palavra possuída (Orobó).

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