segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

ALCIONE ARAÚJO - Lembro, logo penso


Estado de Minas 25/10/2010

Por mais que tente, não me lembro do momento em que comecei a ler, em que entendi o código gráfico como a asa com que se voa para longe do papel. Foi um momento mágico e decisivo na minha vida, mais tarde dedicada a voltar dos longos voos, pousar sobre o papel e fazer da asa o código gráfico. O momento se repete com todos que leem, mas acho que poucos se afligem por não se lembrar. 

Pensei nisso ao assistir ao debate entre professores sobre se o estudante, usuário de máquinas e livros, deve ou não decorar a tabuada de multiplicação. A maioria disse que não, que educar é ensinar a pensar, não a memorizar. Fiquei atônito! 

Não sendo educador, nem responsável pela formação de jovens, ouvi os mestres com fervor, enquanto minha insana memória voava de uma época a outra, até concluir que foi usadíssima para me educar. Talvez por isso não aprendi a pensar. 

Decorei não só a tabuada, como nomes de rios e afluentes. De país, estados e suas capitais. Regras de português, matemática, fórmulas de física e química. Decorei as espécies da fauna e da flora, estrelas e constelações. Decorei tudo de biologia e história – datas e nomes – do Brasil, América e Europa. E mais: ao ler, anotava coisas para levar comigo. Decorei textos filosóficos e científicos, músicas, nomes de santos, orações, piadas. De tanto ler, decorei poemas, cenas teatrais, enredo de romances, clássicos e modernos. Decorei escalação de times, placar de jogos e lances de xadrez. Decorei nomes de ruas, de vizinhos e de grandes mestres que tive. Se mais não lembro é porque esqueci, mas decorei. Idiomas que balbucio, decorei escrita e pronúncia. Se cavar fundo, tudo que sou é aquilo que decorei. 

O memorizado interage com a vida; muda as percepções, é mudado por elas. O que se sabe de cor (cor, cordis, coração) se adensa e se estende dentro da pessoa. Há versos que só percebi ao refluir da memória e abrir-se para que o penetrasse no seu íntimo sabor. Não há polícia que arranque da memória a canção que está lá – voltará quando a emoção solicitar. Mais forte a memória, mais protegida a integralidade do eu. Reitero: tudo que me constitui é a memória do que sou. 

Até o século 20, era comum o leigo saber de cor longos textos bíblicos e os cultos citarem clássicos de memória e com propriedade. A prática criou uma sinfonia – coral de ecos, identificações e reciprocidades, intelectuais e emocionais, dando origem a uma linguagem jurídico-política que, em nome do rigor das ideias, lambia o latim e o grego. Porém, a vaidade lhe incutiu tamanha pompa que ficou retórica, quando não pernóstica – prosódia aparatosa para não dizer nada! 

Quem sabe identificar uma passagem bíblica, o verso genial, a tese do cientista, a frase do estadista? Alusões triviais à mitologia grega, ao Antigo Testamento, à história antiga ou nativa não têm eco: nascemos hoje! Romances, poemas, filmes e peças são coisas de especialistas. Nos interstícios do saber não cabe nada, cheios de anúncio de TV, bordões de humor e novela, etc. 

Para decorar – ler, pensar, entender, repetir – a memória pede silêncio, um luxo de mosteiro e cemitério. No resto, tudo dilui a atenção. Não para 75% dos jovens, que leem com um aparelho sonoro ligado! Entendem? Pensam? Lembram? Será? 

Educar é ensinar a pensar, não decorar. Ok, mas pensar o que, mesmo? Sem a memória, nada se retém, parte-se sempre do zero: ao mar o tesouro que permite pensar! Pura amnésia planejada. Não me lembro de quando comecei a ler porque gastei a memória decorando, por isso não penso. Porém, me lembro, logo penso!

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