folha de são paulo
Em 1992, Fidel veio ao escritório do arquiteto. Em 2008, recebeu dele uma escultura de presente. Na ocasião, elogiei a coerência e a modéstia do amigo Niemeyer
Durante a Eco-92, no Rio, o arquiteto me disse que teria prazer em receber Fidel Castro no seu escritório, na avenida Atlântica, para um encontro com formadores de opinião.
Na noite de domingo, 14 de junho, acompanhei o presidente de Cuba ao encontro. O anfitrião nos aguardava à porta. Subimos pelo velho elevador de grade sanfonada. Casa de ferreiro, espeto de pau. O mais famoso arquiteto brasileiro mantinha seu escritório num antigo prédio cujos elevadores funcionavam precariamente.
Cerca de 40 intelectuais e artistas ali se encontravam, entre eles Darcy Ribeiro, Ênio Silveira, Moacyr Werneck de Castro, Antonio Callado, Leandro Konder, Ferreira Gullar, Eric Nepomuceno, Íttala Nandi, Leonardo Boff, Ivo Lesbaupin, Hugo Carvana, Emir Sader e tantos outros.
Ao cumprimentar Barbosa Lima Sobrinho, Fidel disse não acreditar que ele tivesse 95 anos: "Precisamos colher algumas amostras genéticas do senhor", brincou. Fidel falou durante uma hora da situação de Cuba e de política internacional, até que o interrompi: "Afinal, convidamos o comandante para um encontro, não uma conferência".
A roda se descontraiu, Fidel reclamou: "Não há nada que beber ou comer aqui?" Tomou uma dose de uísque e comeu canapés com apetite.
À meia-noite, nos retiramos. A segurança avisou que o elevador social parara e o de serviço só chegava até o sétimo andar. Sob luzes de lanternas, Fidel e eu descemos do nono andar por estreitas escadas. Para chegar ao elevador de serviço, fomos obrigados a passar por dentro do apartamento de uma família, cruzando a sala e a cozinha.
A 29 de janeiro de 2008, participei em Cuba, na Universidade de Ciências Informáticas, da inauguração da escultura que Niemeyer dera de presente aos 80 anos de Fidel: uma enorme cara vermelha do imperialismo cuspindo fogo, e a pequena Cuba erguendo a bandeira diante dela, resistindo. Fazia frio e havia milhares de estudantes na praça.
No meu discurso, comparei Niemeyer a José Martí: latino-americanos, revolucionários, poetas e anti-imperialistas. Elogiei a coerência e a modéstia de Niemeyer, cujas obras conheci desde criança na lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte.
A última vez que estive com Niemeyer, em seu escritório, foi a 3 de junho de 2010. Levei até ali Homero Acosta, secretário do Conselho de Estado de Cuba. O arquiteto demonstrava ótimo humor e nos falou entusiasmado do álbum de fotos de todas as igrejas que havia projetado.
"Tive formação religiosa. Na fazenda de meus avós, os janelões da sala eram entremeados de oratórios. Minha avó nos obrigava a ajoelhar e rezar antes de cada refeição. Depois deixei de ter fé. Mas sempre gostei de desenhar igrejas."
Ressaltei a beleza da catedral de Brasília, cujas linhas arrojadas lembram mãos abertas ao transcendente, botão de flor se abrindo ao infinito, feixe de ramos de trigo evocando o pão da vida, o coração de boca aberta à fome de Deus.
Niemeyer, aos 102 anos, comentou que toda semana recebia um grupo de amigos para aulas de cosmologia e astrofísica ministradas ali no escritório por um professor de física. Seu entusiasmo com o que aprendia lembrava um jovem estudante.
Guardei dele este belo poema, intitulado "Autodefinição":
Na folha branca de papel faço o meu risco
Retas e curvas entrelaçadas
E prossigo atento e tudo arrisco
na procura das formas desejadas
São templos e palácios soltos pelo ar,
pássaros alados, o que você quiser
Mas se os olhar um pouco devagar,
encontrará, em todos, os encantos da mulher
Deixo de lado o sonho que sonhava
A miséria do mundo me revolta
Quero pouco, muito pouco, quase nada
A arquitetura que faço não importa
O que eu quero é a pobreza superada,
a vida mais feliz, a pátria mais amada
MARCO MAIA
Respeitar o Legislativo é defender a democracia
Assim como é dever do Parlamento atuar com independência, também é sua tarefa proteger suas prerrogativas constitucionais
O fato é que nossa Constituição é explícita em seu artigo 55, que trata da perda de mandato de deputado ou senador em caso destes sofrerem condenação criminal (item VI, parágrafo 2º): "A perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa". O mesmo artigo estabelece, ainda, a necessidade de a condenação criminal ter sentença transitada em julgado para que tal processo seja deflagrado.
Mesmo que paire alguma dúvida sobre tal enunciado, os registros taquigráficos dos debates que envolveram a redação do artigo 55 pelos constituintes, em março de 1988, são esclarecedores da sua vontade originária. Coube ao então deputado constituinte Nelson Jobim a defesa da emenda do também constituinte Antero de Barros: "Visa à emenda (...) fazer com que a competência para a perda do mandato, na hipótese de condenação criminal ou ação popular, seja do plenário da Câmara ou do Senado". E, mais adiante, conclui: "(...) e não teríamos uma imediatez entre a condenação e a perda do mandato em face da competência que está contida no projeto". A emenda foi aprovada por 407 constituintes, entre eles Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, Aécio Neves, Luiz Inácio Lula da Silva, Ibsen Pinheiro, Delfim Netto, Bernardo Cabral, demonstrando a pluralidade do debate empreendido naquele momento.
Portanto, parece evidente que, caso o STF determine a imediata cassação dos deputados condenados na Ação Penal 470, estaremos diante de um impasse institucional. Primeiro, porque não é de competência do Judiciário decidir sobre a perda de mandatos (aliás, a última vez que o STF cassou o mandato de um parlamentar foi durante o período de exceção, nos sombrios anos entre as décadas de 1960 e 1970). Segundo, porque não há sequer acórdão publicado do julgamento em tela para que se possa dar início ao processo no Parlamento. E, terceiro, porque é necessário reafirmar que a vontade do Constituinte foi a de assegurar que a cassação de um mandato popular, legitimamente eleito pelo sufrágio universal, somente pode ser efetivada por quem tem igual mandato popular.
Assim como é dever do Parlamento atuar com independência e autonomia, também é sua tarefa proteger suas prerrogativas constitucionais a fim de resguardar relações democráticas entre os Poderes. Qualquer subjugação do Legislativo tem o mesmo significado de um atentado contra a democracia, e isso é inaceitável. Espera-se que a decisão da Corte Máxima, à luz da Constituição, contribua para o fortalecimento da nossa jovem e emergente democracia.
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