ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
Elas romperam padrões. Foram escritoras e jornalistas em plena sociedade patriarcal e escravocrata. Lutaram pela abolição e pelo voto feminino. Enfrentaram críticas e preconceitos. Remoeram culpas e ansiedades. Expuseram dores e impasses.
Para dissecar esse universo, a historiadora e antropóloga Norma Telles escreveu "Encantações - Escritoras e Imaginação Literária no Brasil, século 19". O livro, lançado agora, foi sua tese de doutorado na PUC-SP em 1987.
O trabalho resgata o contexto social e político das escritoras, analisa seus trabalhos e descreve suas vidas. De olho nos movimentos literários no mundo, Norma, 70, mostra a esquecida vitalidade literária feminina brasileira.
DE SÃO PAULO
Editoria de Arte/Folhapress |
"Devido à nossa educação, estamos certos de que não existem escritoras antes de Cecília Meirelles, Clarice Lispector. Sistematicamente a história das mulheres é silenciada", diz Norma em entrevista à Folha.
Ela conta que, no século 19, "não era culturalmente bem vista uma mulher que escrevia. Elas estavam sozinhas, escreviam em casa, não tinham grupos, não participavam de boemia".
Ligadas à educação e originárias de famílias intelectualizadas, elas tinham apoio em casa para suas experiências pioneiras.
A crítica oscilava. Um exemplo é o caso da poeta Narcisa Amália (1863-1924): "Os críticos adoravam quando ela escrevia poesias mimosas; e odiavam quando ela escrevia coisas políticas".
Uma das mais politizadas escritoras do período foi Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), que militou na Legião da Mulher Brasileira com Bertha Lutz, a pioneira feminista. Escreveu romances como "A Família Medeiros", com severas críticas à escravidão (leia texto nesta página).
Júlia é tida como a primeira mulher a ganhar dinheiro com o trabalho de escritora. "Foi muito prestigiada. Ela conta que levou a família para a Europa com o sucesso de um dos livros", diz Norma.
"Os laços fortes, nos romances de Júlia, são em geral entre as personagens femininas, especialmente em situação de dificuldade financeira, tendo de lutar pela sobrevivência", escreve.
Em "Encantações", a autora não se preocupa em fazer uma aprofundada crítica literária. Seu foco é outro: as conexões sociais e políticas das autoras, seus universos e suas tensões. A historiadora anota que as mulheres daquela época cresciam educadas para os homens, aprendiam a ser "hipócritas e dissimuladas" e a desempenhar um rígido papel na sociedade.
"Foram treinadas para se reprimirem, para se sacrificarem e serem laboriosas, para viverem para os outros, não para si mesmas, foram ensinadas a não demonstrarem seus sentimentos", diz.
ANGÚSTIA DA INFLUÊNCIA
Ao se desvencilhar desses padrões e conquistar espaço na sociedade, as escritoras experimentaram culpa e ansiedade. "É uma luta contra elas mesmas", diz Norma.
Para ela, não há a "angústia da influência" apontada pelo crítico Harold Bloom, mas uma "ansiedade de autoria". "Elas procuravam muito por predecessoras, para ter companhia, porque estavam sozinhas. Não queriam matar a mãe --para seguir o raciocínio de Bloom", diz.
Essa ansiedade é um temor radical de não poder criar, de nunca se tornar um precursor. Assim, o ato de escrever gera isolamento e destruição, explica a antropóloga no livro. Ela observa que "o índice de suicídio entre escritoras, de todas as línguas e de todas as nacionalidades, é muito alto". Basta lembrar os casos de Virginia Woolf, Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath.
Para Norma, a tensão das escritoras naquela época ajuda a entender como, em muitas histórias, as mulheres enlouquecem, morrem, ficam sem opção: "Há exageros românticos, mas não há saídas, as pessoas morrem todas. Não é porque seja um dramalhão, é porque elas não conseguiam enxergar alternativas. Com o tempo, isso mudou. Ganharam prática, leram mais e tinham mais material para refletir", diz.
A antropóloga chama a atenção para o romance "Lésbia", de Maria Benedicta Camara Bormann (1853-1895), que escrevia sob o pseudônimo Délia. O livro trata da vida de uma autora que só consegue escrever depois de se separar e de conquistar uma vida independente.
"Ela demorou quase dez anos para conseguir perceber uma alternativa. Lésbia é uma escritora heroína. O texto fala da necessidade de a mulher ter casa própria, ter seu próprio dinheiro", diz Norma.
E qual o legado dessas escritoras? Norma responde: "Perseverança, uma ambição. Isso era proibidíssimo para mulheres. Mas elas decidiram fazer e deixar uma marca que talvez faça diferença".
ENCANTAÇÕES
AUTORA Norma Telles
EDITORA Intermeios
QUANTO R$ 60 (516 págs.)
AUTORA Norma Telles
EDITORA Intermeios
QUANTO R$ 60 (516 págs.)
Obra de 1893 é fotografia de sociedade em transformação
DE SÃO PAULO
Revoltas de escravos, feitores cruéis, amas de leite amorosas. Casamentos arranjados, aristocratas decadentes, fazendeiros criminosos.
Com esses elementos, Júlia Lopes de Almeida estruturou seu primeiro romance, "A Família Medeiros", publicado em 1893. A trama se passa no limiar da escravidão na zona rural de Campinas, onde a autora morou dos sete aos 23 anos. As fazendas de café operavam num modelo que caminhava para o abismo.
Júlia aponta para a ascensão dos trabalhadores livres e imigrantes nas propriedades e deixa clara a sua defesa da abolição --que só chega nos capítulos finais.
Na época, a obra chegou a ser comparada com "A Cabana do Pai Tomás", de Harriet Stowe, um marco no debate sobre escravidão nos EUA.
A família Medeiros vive do trabalho escravo. Da Europa chega o herdeiro crítico, mas leniente com o sistema.
s |
É na figura de uma prima, herdeira de uma propriedade sem escravos, que a campanha abolicionista ganha corpo na história. Seu nome é Eva, o mesmo da libertária do romance americano.
Na introdução de "Encantações", Norma Telles diz que talvez Júlia tenha procurado fazer uma alusão ao trabalho de Stowe. Transformada em peça de teatro, a obra americana teve suas apresentações proibidas em São Paulo naquele final de século.
Preocupada com questões femininas, Júlia mostra uma sociedade patriarcal cheia de fissuras. Há personagens resignadas com papéis decorativos e fúteis --que nunca se queixam ou questionam os atos do chefe da família.
Há as que buscam independência e tentam se soltar das amarras do casamento por interesse.
E há a escrava que amamentara os filhos dos brancos. De forma caquética, ela movimenta-se, arrastando-se para apoiar e buscar afeto dos senhores.
Escrito entre 1886 e 1888, o texto acabou sendo, na época, atropelado pela Lei Áurea. "A abolição aparentemente tornara obsoleto o tema do livro", observa o autor Luiz Rufatto na orelha da edição de 2009 da editora Mulheres.
Ainda que o enredo mostre tinturas maniqueístas e simplificadas, "A Família Medeiros" fotografa uma sociedade em transformação.
"Os proprietários de escravos têm geralmente uma compreensão muito errada do seu tempo; não tratam de averiguar de onde parte a razão, nem em que se baseia a moral", desabafa Júlia no romance. (EL)
Nenhum comentário:
Postar um comentário