quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Marcelo Coelho

folha de são paulo

Um dedo mindinho
Seria apenas um ritual mágico? Não haveria nenhuma intenção de beleza, de arte naquilo?
Durante 12 mil anos, qualquer habitante do sul da França podia entrar sem problemas naquela caverna -a não ser pelos ursos que andavam por ali. Depois, houve um desabamento, e a entrada do lugar ficou fechada por mais 20 mil anos.
A caverna de Chauvet só foi reencontrada em 1994, e tornou-se tema do documentário de Werner Herzog atualmente em cartaz no CineSesc.
No começo, pensei que tudo se tratava de um trote, de uma falsificação. Redescobertas pelos pesquisadores, as pinturas daquela caverna, feitas há 32 mil anos, pareciam perfeitas demais para ser verdade.
Há cavalos, leões e rinocerontes, que dificilmente algum humano moderno, sem treinamento específico, poderia desenhar.
Rinocerontes no sul da França? Sim, peludos, além de leões sem juba. Naquela época, o frio era bem maior. Tanto que muitas geleiras ainda não tinham derretido, e com isso o nível o mar estava muitos metros abaixo do que é hoje. Era possível ir a pé da França à Inglaterra, atravessando o que é hoje o canal da Mancha.
Trinta e dois mil anos: desse oceano de tempo, os estudiosos viram emergir as pegadas de um menino de oito anos, ao lado da marca das patas de um lobo. Seriam talvez amigos, especula Werner Herzog. Ou terá havido um intervalo de séculos entre um e outro?
Também se encontram, em meio à quantidade de pinturas, de ossos, de estalactites e de cinzas, as marcas de um único artista. É talvez o momento mais emocionante de todo o documentário.
Os arqueólogos identificaram, numa parede da caverna, coberta das impressões das palmas das mãos de muitos trogloditas, a presença de uma pessoa que tinha o dedo mínimo ligeiramente torto.
A marca dessa mão volta a aparecer mais adiante, em outro salão da caverna, junto às pinturas mais espetaculares de todo o conjunto.
"Este sou eu", parece dizer a marca na parede, "e isto foi o que eu fiz".
O inglês James Elroy Flecker (1884-1915) ficou famoso pelos versos que escreveu "A um Poeta, daqui a Mil Anos". Ele se dirige a algum "estudioso da doce língua inglesa", e imagina esse futuro amigo, "que não vejo, que não conheço, e que ainda não nasceu", lendo sozinho, à noite, as palavras de seu poema.
"Eu era um poeta, eu era jovem", diz Flecker. E, "já que não posso ver teu rosto, nem apertar a tua mão, envio-te minha alma, através do espaço e do tempo. Você vai entender".
Em inglês fica melhor. "O friend unseen, unborn, unknown,/ Student of our sweet English tongue,/ Read out my words at night, alone:/ I was a poet, I was young./ Since I can never see your face,/ And never shake you by the hand,/ I send my soul through time and space/ To greet you. You will understand."
Nossa época desconfia muito desses entendimentos através dos milênios. Os pintores da caverna de Chauvet deveriam ter uma visão de mundo completamente diversa da nossa, e o sentido daqueles cavalos e bisontes na parede está tão perdido quanto o pensamento dos próprios cavalos e bisontes retratados lá.
Tanto relativismo termina sendo impossível de sustentar. No mínimo, sabemos que quem retratou o bisonte queria, de fato, retratar um bisonte, e isso é visível para nós.
Seria apenas um ato religioso, um ritual mágico? Não haveria nenhuma intenção de beleza, de decoração, de arte naquilo?
Ah, o conceito de arte, de "obra", de "autoria", muda com o tempo. É verdade. Mas vale invocar o argumento do escritor católico G. K. Chesterton, em "O Homem Eterno" (editora Mundo Cristão). Por que imaginar, diz ele, que o homem das cavernas tinha apenas uma mente pragmática e utilitária, fazendo desenhos apenas para ter boa sorte nas caçadas?
Esse espírito interesseiro conviria mais a um burguês britânico do século 19 do que a um "primitivo"... O homem das cavernas não seria capaz de sorrir, de brincar, de fazer desenhos por prazer?
De tanto respeito à alteridade, de tanto relativismo, terminamos usando a palavra "outro" com O maiúsculo: o "Outro". É tão Outro que não nos julgamos capazes de entendê-lo.
O raciocínio termina por ser equivalente ao de quem, por desprezo, chama de "primitivos", de "trogloditas", os artistas da caverna. Mas eles nos estenderam as mãos.
Em volta daquele lugar, ainda vagavam hordas de Neandertais. O pintor daqueles cavalos e leões marcava, para o futuro, o território dos homens.
coelhofsp@uol.com.br

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