Nas profundezas da web
Escondido no submundo da internet, site Silk Road vende drogas e movimenta cerca de R$ 2,4 milhões por mês
Criado há dois anos, o serviço é investigado pela polícia dos EUA, mas continua no ar porque está escondido na "deep web", a internet profunda, espaço da rede só acessível usando o Tor, um browser para navegação anônima.
Nele, os sites têm endereços cifrados e não podem ser encontrados por mecanismos de busca tradicionais, como o Google.
Ao todo, o Silk Road movimenta cerca de R$ 2,4 milhões por mês, segundo Nicolas Christin, da Universidade Carnegie Mellon (EUA), autor do primeiro estudo sobre o site.
Concluída em julho do ano passado e revisada em novembro, a pesquisa mostra que a maioria dos vendedores comercializa poucos itens, que as entregas são feitas por correio e que drogas são o carro-chefe. Em entrevista, Christin explica o que isso significa: "O Silk Road concorre com o traficante da esquina, não com grandes cartéis".
Com 14% dos itens à venda, a principal categoria é maconha, inclusive em volume de negócios. "Suspeito que o site não seria viável se não comercializasse esse tipo de produto", diz Christin, diretor-associado do Instituto de Informação em Rede da universidade.
Na "web da superfície", como usuários da "deep web" chamam a internet comum, há poucas menções ao Silk Road. A ideia é manter o mistério: quanto menos atenção chamar, melhor. Questionado pela Folha, o responsável pelo site limitou-se a dizer: "Desculpe, temos uma política de não falar com a imprensa".
O pseudônimo usado pela pessoa -ou pelo grupo- por trás do site é Dread Pirate Roberts, personagem do romance "A Princesa Prometida" (1973), de William Goldman. No livro, Roberts não é só um pirata, mas vários, que repassam a alcunha uns aos outros em uma sucessão criminosa.
ORIGENS MILENARES
Assim como o pseudônimo de seu criador, o nome do Silk Road também é uma referência: remete à Rota da Seda, que ligou Ásia, África e Europa pelo comércio por cerca de 2.000 anos.
Embora tente manter a discrição, Dread Pirate Roberts não conseguiu: dois senadores dos EUA pediram investigação poucos meses após a inauguração do site.
Em 2012, a DEA (Agência de Combate às Drogas) admitiu investigar o Silk Road. Desde então, usuários do site relataram o sumiço de alguns vendedores.
A presença de brasileiros existe, mas é pequena. No fórum, há conversas em português e referências a cidades do país. "Meu envelope foi entregue lacrado e intacto", relata em inglês um usuário que diz ser brasileiro. Segundo ele, a entrega foi feita em "quase dois meses", disfarçada como cartão de aniversário.
A Folha escreveu a cinco usuários brasileiros -um deles respondeu, pedindo anonimato. Diz ser um advogado paulistano de 26 anos. "Não acesso mais de uma vez por semana", afirma o usuário, registrado no site desde 2011 e comprador de remédios controlados.
Para Pedro Abramovay, ex-secretário nacional de Justiça e professor da FGV-RJ, a lei é cinzenta sobre recebimento de drogas do exterior: "Em tese, sempre que é para consumo pessoal é caracterizado como porte". Ele defende que essa é a interpretação correta.
"Mas daí para a polícia entender e caracterizar dessa forma, é outra história." Ou seja: se for pego, o usuário pode, sim, responder por tráfico internacional.
'Internet profunda' abriga de dissidentes a pedófilos
Ao codificar dados inúmeras vezes, rede Tor permite navegação anônima
Navegador não tem sistema de buscas completo; por isso, listas de sites são bastante populares
A "deep web" -ou internet profunda- é, em resumo, uma parte da rede a que buscadores comuns não chegam. Essa definição inclui diversos tipos de sites: os que exigem senha, os que não têm links direcionando a eles, os que variam de acordo com o usuário que está acessando etc.
Também entram nessa categoria os sites hospedados no Tor (The Onion Router), rede que procura garantir o anonimato tanto de sites quanto de usuários. É aqui que, por exemplo, fica boa parte da pornografia infantil.
Criado em 2002 pelo Laboratório de Pesquisa Naval dos EUA, que procurava um método seguro de transmitir informações, o projeto é independente do governo há dez anos e, desde 2006, passou a ter uma organização própria que o financia.
Ao embaralhar diversas vezes as informações, dificultando muito o rastreamento, o sistema tornou-se sinônimo de acesso à web profunda. Ele pega um dado a ser transmitido e, ao enviá-lo, o codifica e recodifica em várias camadas -daí o "onion" ("cebola", em inglês).
Esses pedaços de informação passam por diversos computadores até o ponto final. Um site hospedado na rede, por sua vez, faz o mesmo.
Diferentemente do que acontece na internet comum, em que as informações são trocadas diretamente entre IPs (os "endereços virtuais" dos usuários), o sistema da web profunda combina um ponto de encontro na rede para que todas as informações sejam trocadas. Os endereços hospedados na rede Tor terminam sempre com.onion, caso do Silk Road, e são acessados apenas pelo browser Tor.
Além disso, têm URLs enigmáticas, com diversas letras e números sem sentido aparente -o endereço do Tormail, principal serviço de e-mail baseado na rede Tor, serve como bom exemplo: jhiwjjlqpyawmpjx.onion.
DIFÍCIL DE ACHAR
Começar a navegar na rede Tor não é tarefa fácil. A primeira impressão é a de ter pegado uma máquina do tempo para o fim dos anos 90: como muitos dos usuários bloqueia extensões em Java e Flash, temendo ser identificados, os sites são bem feios.
Após baixar o browser que possibilita o acesso, fica difícil saber aonde ir sem ter à disposição um sistema de busca completo. Não dá para "dar um Google" no Tor. É por isso que listas de sites são bastante populares.
O mais famoso deles é o Hidden Wiki, que lista e categoriza centenas de sites de acordo com uma breve resenha. Há outros que seguem a mesma dinâmica, como o Tordir.
Apesar de ser composto principalmente por conteúdo considerado legal, como "ativismo" e "livros", há categorias como "pornografia infantil" e "redes de crime".
Nesse canto escuro da web, também é possível encontrar imagens que a Justiça brasileira proibiu na internet comum, como as de atrizes nuas.
FRASE
"O modelo de negócios do Silk Road é 'emprestado' do eBay: a porcentagem do site diminui conforme aumenta o valor do produto"
"Não há um 'barão das drogas' no Silk Road, são vários vendedores que comercializam quantidades pequenas e médias"
NICHOLAS CHRISTIN, pesquisador da Universidade Carnegie Mellon (EUA)
NICHOLAS CHRISTIN, pesquisador da Universidade Carnegie Mellon (EUA)
Site Silk Road usa moeda virtual que protege identidade de doador
COLABORAÇÃO PARA A FOLHAUma moeda que oscilou de R$ 0,60 a R$ 60 em menos de dois anos. Assim pode ser definido o Bitcoin, unidade monetária que existe só na web e é usada no Silk Road porque, em tese, é anônima.Criado por Satoshi Nakamoto, pseudônimo de uma pessoa (ou de um grupo), o mercado de Bitcoins começou a operar em janeiro de 2009.
A ideia não é vinculada à venda de produtos ilegais. Sites como o WikiLeaks, por exemplo, recebem doações por meio de Bitcoins para proteger o anonimato de doadores. Por meio de sites especializados, é possível trocar Bitcoins por dinheiro real e vice-versa. Um Bitcoin hoje vale R$ 52,76.
Cada usuário pode ter uma ou várias "carteiras", que têm um número único e funcionam de modo análogo a uma conta bancária. Para abrir uma carteira Bitcoin não é preciso se identificar, nem mesmo com um e-mail.
O mercado de Bitcoins é um sistema peer-to-peer ("pessoa-a-pessoa"): não possui intermediários e é descentralizado. Por isso, não há uma instituição que controle todo o histórico de transações, papel que o Banco Central desempenha no Brasil.
Desse modo, todos os usuários têm acesso à lista das transações realizadas, como forma de chancelá-las.
O caráter pulverizado do sistema dificulta o combate a fraudes. A conclusão é de Fergan Reid, pesquisador da Universidade de Dublin (Irlanda) que, em março passado, concluiu estudo sobre a segurança do sistema de Bitcoins.
"Se um usuário é passado para trás, não há uma autoridade central a quem ele possa recorrer", diz Reid, em entrevista à Folha por e-mail.
O mecanismo de funcionamento permite ainda que haja cruzamento de dados, quebrando o anonimato das carteiras e revelando quem está por trás delas. "Diria que provavelmente é possível fazer algum cruzamento entre dados do Silk Road e dados públicos de Bitcoin", afirma.
"Mas é impossível dizer quão longe esse rastreamento chegaria sem fazê-lo. Depende do nível de cuidado que dos usuários do site."
Hoje, segundo Reid, há cerca de 11 milhões de Bitcoins em circulação -o equivalente a R$ 580 milhões.
ENTREVISTA
Para usuário, mercado resolve problema atual
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA"As transações são anônimas, impessoais e a distância." Essas são as características que o advogado paulistano F., 26, cita para usar o Silk Road para comprar remédios controlados. "É muito mais seguro", diz. Leia trechos abaixo. (AA)Folha - Que produtos você costuma comprar no SR?
F. - Estimulantes. Meu trabalho exige muita concentração por longos períodos de tempo. Uso Adderal ou Concerta/Ritalina para me ajudar a manter o foco. São os mesmos remédios que os médicos receitam para pacientes com déficit de atenção.
Quais motivos o levaram a comprar pelo site?
O Silk Road resolve um grande problema do mundo contemporâneo. Sou um membro produtivo da sociedade. Trabalho, pago impostos, voto com consciência. Na privacidade do meu lar, gosto de ingerir substâncias que alguém na Anvisa acha que eu não deveria ingerir.
O Silk Road é uma alternativa para gente como eu, até que a sociedade acorde e perceba a estupidez de querer controlar a esfera privada dos outros numa suposta democracia.
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