TRANSIÇÃO NA IGREJA
Data provável do conclave é 10 de março
Vaticano pode mudar regra que manda observar entre 15 e 20 dias como "sede vacante", o período sem o pontífice
Papa Bento 16, que renunciou, despede-se dos cardeais no dia 28 de fevereiro e embarca para Castel Gandolfo
É o que informa Robert Moynihan, editor de "Inside the Vatican", considerada a mais bem informada revista católica do mundo em assuntos do Vaticano.
A data faz todo o sentido, se se considerar que o padre Federico Lombardi, porta-voz do Vaticano, adiantara que uma antecipação era viável desde que todos os 117 cardeais eleitores já estivessem em Roma até o fim do mês.
Há muitos motivos para que essa presença maciça ocorra até o dia 28, a data em que o papa se despede dos cardeais e, às 17h (13h em Brasília), toma o helicóptero que o levará a Castel Gandolfo, usualmente a residência de verão dos papas.
Primeiro, começou ontem uma série de meditações diárias, que irão até dia 23, das quais participará o próprio papa. Os especialistas dizem que esses encontros servem para apontar os rumos desejados para a igreja pelo papa e por pelo menos um dos "papabili", Gianfranco Ravasi, que conduz as meditações.
Aliás, "Vatican Insider", boletim do jornal "La Stampa", anunciou ontem que o cardeal Tarcisio Bertone, o segundo na hierarquia do Vaticano, designou Ravasi como seu candidato a papa.
É natural que os cardeais queiram participar de pelo menos parte das meditações.
Segundo e principal ponto: todos os cardeais, eleitores ou não, hão de querer se despedir do papa tanto na cerimônia pública do dia 27, como na particular do dia 28.
Se todos os cardeais estarão em Roma, como parece provável, e se não há, desta vez, a necessidade de observar nove dias de luto pela morte do pontífice, como aconteceu na eleição anterior, o Vaticano pode mudar a regra que manda observar um mínimo de 15 e um máximo de 20 dias como "sede vacante" -ou seja, sem um papa no comando. A "sede vacante" começa dia 28.
O risco da antecipação é abreviar o período de consultas prévias para filtrar os "papabili". Se os cardeais entrarem para o conclave sem algum consenso prévio, a escolha pode se alongar demais -e deixar ainda mais exposta a divisão da igreja.
Vaticano quer 'momento de oásis' agora
DO ENVIADO A ROMA
Uma semana depois do "raio em céu azul", como definiu um cardeal a renúncia do papa, outro cardeal, Gianfranco Ravasi, chefe do Conselho de Cultura do Vaticano, pretende superar o turbilhão com "um momento de oásis".
É assim que Ravasi define o período de meditações que ele está conduzindo desde ontem e até o dia 23. Afinal, trata-se da semana de retiro espiritual que se segue ao início da Quaresma.
Mas retiro espiritual era tudo o que não estava presente ontem na praça de São Pedro, durante o Angelus habitual.
Celulares em penca miravam a janela do Vaticano em que o papa aparece, quatro telões espalhados pela praça traziam Bento 16 mais perto, bandeiras saudavam o pontífice (da Polônia, da Itália, do México e a indefectível bandeira brasileira) e uma faixa improvisada acariciava: "Ti vogliamo bene" (te queremos bem).
Em volta, 40 banheiros químicos, um batalhão de voluntários dos serviços médicos, e todos os 800 metros entre a via Traspontina e a praça interditados, porque a Prefeitura de Roma esperava três vezes mais pessoas do que as 50 mil que o Vaticano calculou. O papa atual definitivamente não é um "pop star" como seu antecessor. Não improvisa. Ele leu todo o seu pronunciamento de ontem.
TRANSIÇÃO NA IGREJA
Papa Bento 16 pede meditação a católicos para 'desenterrar Deus'
Porta-voz do Vaticano estimou em 50 mil pessoas o público que esteve na praça São Pedro
A maior parte do Angelus dominical foi dedicada às tentações que "Jesus superou na travessia do deserto"
As meditações foram encomendadas pelo papa (bem antes de anunciar a renúncia) ao cardeal Gianfranco Ravasi, responsável pela Cultura no Vaticano, "papabili" que é tido como um dos maiores especialistas em Bíblia do mundo.
Ravasi conta que iniciaria a meditação de domingo com uma citação de Etty Hillesum, jovem holandesa de origem judaica, morta no campo de concentração de Auschwitz, em 1943.
O papa citou Etty na sua homilia de quarta-feira, no que Ravasi diz ser uma extraordinária coincidência: "Nos encontramos com Etty Hilesum sem saber".
No seu diário, a jovem holandesa escreve: "Um poço muito profundo está em mim. E Deus está naquele poço. A cada vez que tento juntar-me a ele, mais a pedra e a areia o cobrem: agora, Deus está sepultado. É preciso de novo desenterrá-lo".
Não deve ter sido coincidência que, na mensagem do Angelus, o papa também tenha apontado um Deus oculto pelos que "o instrumentalizam para seus próprios fins, dando mais importância ao sucesso ou aos bens materiais". "Desse modo, Deus se torna secundário, se reduz a um meio, se torna definitivamente irreal."
Foi esse o fulcro do penúltimo Angelus de Bento 16 como papa e será esse o centro das meditações na capela Redemptoris Mater (Mãe Redentora), das quais participarão os cardeais que estiverem em Roma (eleitores ou não no conclave) e também Bento 16.
É natural supor que dessas palestras surgirão as linhas gerais do que o atual papa espera de seu sucessor, até porque Ravasi é homem de extrema confiança de Bento 16 e que concorda com o ponto de vista teológico deste, como se vê pela coincidência de ambos em citarem a ideia de um Deus enterrado e a necessidade urgente de desenterrá-lo.
Complicado, no entanto, é traduzir essa linguagem eclesial cifrada para uma plataforma concreta de gestão da igreja no próximo pontificado.
A única coisa que fica clara para leigos é que tanto o papa como o "papabili" Ravasi não querem que as tentações mundanas pelo poder e pelos bens materiais suplantem o divino, como sucessivos episódios dos últimos meses indicam estar acontecendo.
A maior parte do Angelus foi dedicada às tentações que "Jesus superou na travessia do deserto", os 40 dias que dariam origem posteriormente à tradição da Quaresma, iniciada quarta-feira.
Bento 16 voltará a aparecer em público mais duas vezes: no Angelus do domingo, dia 24, que coincide com o primeiro dia das eleições italianas, e na tradicional audiência das quartas-feiras, transferida de um salão do Vaticano para a Basílica de São Pedro, na expectativa de um comparecimento maciço de fiéis à despedida do papa, o primeiro que deixa o Vaticano por vontade própria desde 1294.
Ontem, no entanto, o público presente foi bem inferior à expectativa da Prefeitura de Roma, que previa 150 mil pessoas e tomou todas as providências de praxe para atender essa massa.
O padre Federico Lombardi, porta-voz do Vaticano, calculou em 50 mil os presentes, mas o número parece algo exagerado, porque couberam todos os fiéis na própria praça, sem extravasar para as ruas em torno.
ANÁLISE
Inimigo do relativismo, papa deixa uma herança maculada
DAVID GARDNERDO “FINANCIAL TIMES”A fragilidade do homem de 85 anos que renunciou, por razões de saúde, ao cargo de 265º bispo de Roma não condiz com sua reputação merecida de dogmatismo.Visto, com razão, como teólogo sutil, este papa em muitos momentos passou a impressão de que seu ponto forte real era o fato de ser estudioso do poder.
Inimigo contumaz do relativismo moral e guerreiro cultural militante, o papa Bento 16 teve um impacto enorme sobre a Igreja Católica, impacto esse que antecede de longe sua permanência relativamente breve no trono de São Pedro.
Bento ocupou com firmeza a linha de continuidade a partir de João Paulo 2º, o papa polonês de quem foi confidente e implementador, governando com centralismo férreo para impor a ortodoxia e reverter o processo de modernização iniciado pelo Concílio Vaticano 2º.
Karol Wojtyla, que emergiu do conclave de cardeais em 1978 como papa João Paulo 2º, fez de Joseph Ratzinger, teólogo bávaro com pouca experiência pastoral, primeiro cardeal e depois chefe da Congregação para a Doutrina da Fé. Esta é a instituição do Vaticano sucessora da Santa Inquisição; seu trabalho consiste em velar pela ortodoxia.
O cardeal Ratzinger investiu contra a Teologia da Libertação, na América Latina, e os teólogos jesuítas na Europa, atacando o feminismo e o homossexualismo e, aparentemente, pensando que os excessos do primeiro teriam levado ao segundo, ao confundir as diferenças entre homens e mulheres.
A rigidez dele e de João Paulo 2º os levou a tentar sufocar as discussões sobre os padres casados e o celibato, a ordenação de mulheres, a contracepção e o aborto.
O cardeal Ratzinger ocupou essa posição por 25 anos, até suceder a João Paulo, em 2005 -tempo mais do que suficiente para moldar as instituições da Igreja Católica, mesmo que não o mundo real dos fiéis católicos, no formato que queria.
A Igreja Católica Romana, com cerca de 1,2 bilhão de seguidores em todo o mundo, é uma força espiritual potente e uma instituição singularmente poderosa.
O papa procurou blindá-la com as certezas doutrinais de um militante clerical.
Houve momentos em que a impressão que se tinha era que ele estava competindo com as certezas inequívocas e aparentemente concentradas do islã.
A guerra do papa Bento contra o relativismo parece ser incapaz de traçar distinções entre os crimes mais hediondos e divergências discutíveis em que a fé discorda da razão -estas, a matéria-prima da teologia. Será que isso agora poderá mudar?
Os eleitores papais são um pouco como o FMI ou o Banco Mundial no fato de terem uma representação desproporcional de europeus, geralmente escolhidos por seu conservadorismo (cerca de um quinto é de italianos, e quase dois quintos são burocratas do Vaticano).
Os cardeais da América Latina, África, Ásia e do Oriente Médio com frequência são mais conservadores, de qualquer modo.
Os papas Bento e João Paulo parecem ter conseguido encher com seus escolhidos o colégio de cardeais que vai eleger o novo papa, mas o absolutismo deles pode acabar por criar mais católicos apenas culturais que os católicos da espécie teologicamente correta que pretendiam.
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