Seu Severo e seu Estevão
Quem cozinhava era o Estevão, mas não soltava segredos. Ria com a mão na boca ou, melhor, sorria
QUANDO COMPRAMOS o sítio, os meeiros eram os antigos donos. De tanto que gostavam de lá, iam ficando à medida que a terra mudava de mãos. Seu Severo e seu Estevão.Seu Severo era da cidade, se é que se poderia chamar de cidade a Paraty daquele tempo. Não aguentava o movimento e passava a semana na roça, que era o sítio, a dez minutos da cidade. Tinha lá um açougue, que deixava na mão de um dos filhos, e no domingo descia para visitar a mulher. Era um velho muito bonito, forte, olhos azuis como contas de gude, cabeleira farta e branca.
Seu Estevão era amigo dele. Acho que se conheciam desde a infância, e era o empregado e não era. Só se podia desconfiar que sim, pois andava sempre atrás dele. Morro acima, morro abaixo, conservava mais de metro de distância, numa hierarquia quase real.
O que faziam? Tudo. Dia após dia, era o bananal que tinha que ser cuidado como um navio. Acabado de limpar, era hora de começar. Usavam botas por causa das cobras, sempre respeitando a distância canônica de um atrás outro na frente.
Tínhamos horta, nada de se orgulhar muito. Plantavam feijão e mandioca. A casa deles era daquelas típicas, muito branquinhas, janelas azuis e o terreiro varrido à exaustão. E as poucas panelas rebrilhando e florzinhas espalhadas de um jeito que nenhuma paisagista conseguiria imitar. Eram tufos coloridos nascendo da terra seca, ora encostados na casa, ora sozinhos pelo caminho. Nunca cheguei a entender a estética das boninas nem daquelas marias-sem-vergonha.
Quem cozinhava era o Estevão, mas não soltava segredos. Ria com a mão na boca ou, melhor, sorria e miava qualquer coisa quando eu perguntava sobre o peixe seco dependurado no varal. O arroz tinha um bom toque vermelho, e o feijão era o mesmo que levava para nós, macio de tudo e dava um caldo grosso.
Uma vez me botei atrás do Estevão enquanto cuidava das galinhas para descobrir como é que sabia quais ovos deveria pegar. Ele, na frente, ia se abaixando, pegava o ovo, sacudia no ouvido e ou colocava de volta ou pegava. Explicações, zero. Eu tentava ouvir as profundezas do ovo, mas nada. Ele tinha uma língua que soava como latim antigo para mim. Em matéria de ovos, ele declinava. "Os óvi".
Nem dava para acreditar era no dia de fazer farinha. Serviço do qual seu Severo não participava, só o Estevão com a ajuda de alguém. Ele combinava como um cromo no meio daquela tralha de madeira antiga até que surgia, no fim, recoberto de pó branco, cabelos, bigodes e tudo, e a farinha era fina e saborosa.
Seu Estevão morreu primeiro, na Santa Casa, aquela construção antiga junto ao rio, com a imensa árvore de fruta-pão de folhas abertas e espalhadas. À noite, a lua se planta ali em cima, e sei que o Estevão deve gostar de ver a cidade assim, lá no cocoruto do cemitério, com vista ampla do mar. Mar, que eu saiba, do qual ele nunca chegou perto.
O Severo não aguentou a morte do amigo. Foi definhando, mudou-se afinal para a cidade, apequenou-se. Já não achava graça em nada e morreu na cidade mesmo, respeitado por todos, pai de muitos homens e só uma filha, se bem me lembro.
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