Valor Econômico - 06/05/2013
Gosto
da diferença que Maquiavel faz, no "Príncipe", entre os governantes que
atingem o poder por sua ação própria e aqueles que chegam lá graças a
amigos ou aliados, "pelas armas alheias", diz ele. Esta distinção ajuda a
entender a política brasileira do período democrático que começou em
1985 - e, em especial, a pensar o momento crítico pelo qual ora passa a
presidente Dilma.
Podemos dividir nossos seis presidentes civis
em três grupos. José Sarney e Itamar Franco assumiram a Presidência pelo
acaso, pela "fortuna"; tinham sido indicados para a vice-presidência
como uma espécie de aposentadoria, mas a morte de Tancredo Neves e o
impeachment de Fernando Collor os projetaram para a chefia do Estado.
Por outro lado, Collor e Lula alcançaram o poder por méritos próprios:
foram os dois que mais se empenharam nessa direção. Collor parece ter
realizado o alerta que Dom João VI, ao partir para Portugal, teria feito
ao filho: "Pedro, toma esta coroa antes que algum aventureiro lance mão
dela". Collor lançou mão, sim. Percebeu que faltavam nomes para
enfrentar a esquerda, na primeira eleição da Nova República, e planejou
com cuidado e presteza os passos que o levariam à vitória. Lula foi o
contrário - uma longa travessia, geralmente do deserto, a certeza de que
ele jamais seria eleito (dizia Delfim Neto: se lançarem um poste contra
Lula, o poste ganha as eleições) e, finalmente, a moderação, as
alianças e a vitória consolidada. Talvez esses trajetos opostos nos dois
lutadores - Collor açodado, Lula demorado - expliquem também por que o
primeiro não durou e o segundo, sim. Lula aprendeu; Collor, não. Foi
presidente de uma única edição.
Finalmente, temos dois
presidentes que devem sua ascensão às armas alheias mas que, diferentes
de Sarney e Itamar, foram eleitos pelo povo - e, com isso, constituem
uma situação intermediária. Não chegaram ao poder por mérito próprio
mas, uma vez no Palácio, procuraram construí-lo. Falo de Fernando
Henrique Cardoso, escolha imperial de Itamar, e de Dilma Rousseff,
decisão unilateral de Lula. Sem o apoio do antecessor, nenhum deles
venceria. Aliás, nem seriam candidatos. O PSDB dispunha de nomes mais
cotados do que FHC, em 1984; o PT tinha, em 2006, vários cardeais à
frente da ministra da Casa Civil.
Mas FHC tem - por enquanto -
uma vantagem sobre Dilma. Ele soube transformar a fortuna, a sorte, em
mérito. Não foi fácil. Lembro Maria da Conceição Tavares contestando um
apoiador de FHC, antes da eleição: "Mas você acha que o Fernando vai
enrolar o Antonio Carlos Magalhães?" Pois enrolou. Foi favorecido pelo
fato de que estava quase ombro a ombro com os demais chefes tucanos. Uma
vez eleito, nenhum era maior que ele, no partido. Mas de todo modo
esse, que era apenas um entre vários líderes tucanos, se tornou o líder
inconteste de sua ala política, ao longo de seus dois mandatos, e
continua sendo o referencial maior do partido - simplesmente, porque,
até hoje, nenhum tucano voou tão alto.
Contudo, essa conversão da
sorte em mérito não aconteceu - ainda? - com Dilma. A referência maior
do PT continua sendo Lula. Ele respeita a sucessora. Jamais avançou
sobre suas prerrogativas. Contudo, a personalidade dela ainda precisa
ser consolidada. O ano difícil que ela está vivendo dificulta ou atrasa
essa tarefa.
Tanto Lula quanto Dilma foram aplaudidos pela
oposição ao assumirem o governo. Lula se empenhou na reforma da
Previdência, e o PSDB o apoiou nisso - mas com a finalidade de mostrar
que Lula fazia a política tucana, que essa era a política certa, o que
por sua vez criaria uma distância entre Lula e quem votou nele para
romper com o tucanato. Dilma demitiu ministros suspeitos, e a oposição a
saudou por isso - mas com a finalidade de criar uma cunha entre ela e
Lula, entre ela e o PT, e de dizer que ela reconhecia, afinal, que seu
partido era corrupto. Os dois "apoios" foram, assim, apenas táticos:
pretendiam esvaziar os dois presidentes petistas. Foram dados por
esperteza. Mas não tiveram nenhum efeito. Não ajudaram, nem
prejudicaram.
O fato é que, de alguns meses para cá, a
Presidência enfrenta uma crise. As medidas econômicas são criticadas. A
baixa dos juros, certamente uma das iniciativas mais importantes na
área, é frontalmente contestada. O alto peso das commodities em nossa
pauta de exportações, a desindustrialização do país e o elevado número
de manufaturados que hoje importamos preocupam. Três candidatos já se
perfilam para desafiar a incumbente no ano que vem. Embora hoje ainda
seja provável uma vitória de Dilma - no segundo turno - a situação pode
mudar até o fim de 2014 e, pelo menos, demandará muita energia política.
Na
verdade, o que está em jogo não é apenas o pleito do ano que vem. De
pouco serviria à esquerda um segundo mandato de Dilma nos moldes do
segundo de FHC, que não agregou quase nada ao que ele tinha realizado
nos primeiros quatro anos de governo. Há tarefas cruciais pela frente. A
questão é se a presidente será capaz de realizá-las. Ela não é uma
comunicadora como Lula, mas sua tarefa já não depende de se comunicar
bem e, sim, de organizar o poder. Talvez o mais difícil seja unir uma
agenda política e social, que se escora na inclusão social, e uma
econômica, que obedece a outra lógica. A primeira agenda é de esquerda. A
segunda, sendo capitalista, tende à direita. Conciliar as duas, ou usar
a economia como meio para atingir fins sociais e políticos, não é coisa
fácil. Mas essa dificuldade não é só de Dilma. Quem quer que vença as
eleições de 2014 terá esse mesmo problema pela frente.
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