segunda-feira, 6 de maio de 2013

Arnaldo Niskier e João Sayad no Tendências/Debates

folha de são paulo

ARNALDO NISKIER
Visita a Blaise Pascal
"Com tanta tecnologia educacional disponível, por que um número tão grande de adultos analfabetos?", perguntam no auditório
Sob frio constante e uma chuvinha que teimava em cair, estivemos em Clermont-Ferrand, a uma hora de avião de Paris. O que ela tem de notável, além da sua origem fortemente vulcânica, é a presença da matriz da empresa Michelin (os bondes elétricos que por ali trafegam têm pneus de borracha). Clermont-Ferrand tem 140 mil habitantes.
Mas o nosso objetivo, a convite do professor brasileiro Saulo Neiva, que lá se encontra há três anos, era conhecer e falar para os alunos da Universidade Blaise Pascal, no Museu das Ciências do Homem.
O tema por eles escolhido foi a situação atual da educação brasileira. São estudantes de língua portuguesa de várias partes do mundo.
Em primeiro lugar, sentimos o espanto diante da afirmação de que temos 60 milhões de estudantes, em todos os graus de ensino.
O esforço pela qualidade é visto com ceticismo, quando se sabe que os professores são formados de modo precário e recebem baixos salários (temos 3 milhões de professores e especialistas).
Uma pergunta do auditório dá bem a dimensão do interesse despertado pela conferência: "Com tanta tecnologia educacional hoje disponível, por que um número tão grande de adultos analfabetos?".
De fato, parece incompreensível a existência de 14 milhões de adultos analfabetos. Procurei detalhar as metas do Plano Nacional de Educação (PNE), em que isso figura em destaque. Há promessa de erradicação do analfabetismo até o ano 2020, mas não existe nenhuma garantia de que isso venha a ocorrer.
As metas do PNE são numericamente ambiciosas, mas não se sabe se haverá recursos financeiros e uma forte vontade política para que todos os objetivos sejam finalmente alcançados.
A Universidade Blaise Pascal (nome dado em homenagem ao grande pensador francês nascido na cidade) tem 16 mil alunos.
Hoje se empenha muito na educação à distância. Vê grande futuro nessa modalidade, na qual faz também pós-graduação. Deseja oferecer a "nuvem de livros" aos seus alunos e pretende um convênio com os autores da ideia, no Brasil.
No debate travado em Clermont-Ferrand, em dado momento, um aluno do Senegal perguntou a razão de não existir um sistema mundial de atendimento educacional à distância. Claro que é uma boa sugestão. Ele arrematou: "A matemática, por exemplo, é diferente em cada país?". Concordamos com o seu ponto de vista.

    JOÃO SAYAD
    Taxonomia dos ratos
    Se é impossível resolver, classificamos: o taxonomista é, antes de tudo, um resignado; convido a iniciar uma taxonomia da corrupção
    Face a problemas insuperáveis, a ciência classifica.
    Médicos classificam tumores em benignos, malignos, perversos ou dóceis. Zoólogos falam de baratas pretas, marrons, voadoras, cascudas ou molengas; ratos de rabo longo, camundongos, ratazanas, roedores urbanos e rurais. O método se chama taxonomia.
    Se é impossível resolver, extinguir ou explicar, classificamos. O taxonomista é, antes de tudo, um resignado.
    Convido o leitor a iniciar uma taxonomia da corrupção.
    Existe a corrupção do fiscal, do policial, do oficial de justiça, do perito avaliador, do inspetor da prefeitura, do parlamentar. Esta é a malversação do tipo público. E a corrupção do setor privado, obviamente, faz par a cada uma das classes de corrupção do setor público.
    Mas gêneros, espécies e subespécies ainda não foram bem definidos.
    Contribuo, então, com uma classificação que, mesmo modesta, pode aumentar a produtividade dos caçadores de ratos, fabricantes de inseticidas e ratoeiras, auditores, corregedores, promotores, funcionários do Ministério Público, jornalistas e até gente do terceiro setor que ainda se incomode com o tema.
    Dividiria a corrupção do setor público em dois grandes grupos.
    A grande corrupção (chamemos de corrupção "a la grande") está associada a investimentos públicos enormes. É o mundo das negociatas impressionantes, das concessões viciadas, das toneladas de cimento.
    O caso famoso do prédio do Tribunal Regional do Trabalho, na Barra Funda, em São Paulo, é bom exemplo. O prédio está lá. É grande, espaçoso e funcional. Pode-se dizer até que é bonito. Custou 160 milhões de reais a mais do que deveria ter custado. Mas está lá.
    O culpado pelo desvio foi morar em Miami, comprou um monte de carros esporte e voltou preso. Quem ficou aqui acabou devolvendo em prestações o superfaturamento praticado. A relação custo-benefício, no final das contas, foi positiva: houve custo excessivo, mas o prédio, repita-se, ficou pronto.
    As características desse tipo de corrupção são duas: primeiro, o bem público foi produzido e entregue. Depois, o valor subtraído ficou conhecido e teve limite. Acabou a obra, acabou o roubo. E os culpados mudam de ramo e nos deixam em paz, se não forem presos.
    Existe também a corrupção pequena (de custeio, diriam os economistas): contrata parentes, compra papel higiênico superfaturado, orienta a criação de empresas de fachada para prestarem serviços, cria cooperativas para pagar funcionários terceirizados, faz acordo de "kick back" com os fornecedores e, principalmente, avacalha, paralisa, lasseia e termina por matar a organização que administra.
    Esse tipo de corrupto "petit cash" instala-se em organizações públicas menores, nas quais pode atender a fisiologia e necessidades de financiamento eleitoral sem ser percebido de imediato.
    Sangra a organização anos a fio, faz favores a seus superiores e enche-se de queijo de maneira paulatina e continuada. A alta administração do órgão se afasta e se esconde dos funcionários de carreira; o segredo e a confidencialidade passam a ser as regras na organização.
    E os serviços públicos que seriam oferecidos vão perdendo qualidade, tornam-se irrelevantes. Os funcionários acabam deprimidos, pois não têm o que fazer, ganham mal e sabem que o "andar de cima" ganha bem por dentro e por fora. O resultado é o apodrecimento da organização até a morte definitiva.
    O custo desse tipo de corrupção parece pequeno. Mas um desvio de 1 milhão por ano por tempo indefinido tem um valor atual elevado. Se a taxa de juros de desconto for de 7,5% ao ano, 1 milhão por ano custa ao contribuinte mais de 10 milhões.
    Pior ainda, a relação custo-benefício é infinita: custa 10 milhões e não oferece nenhum benefício público. Não há adição, só subtração. É dez dividido por zero.
    Não há um prédio, não há nada concreto no fim da linha, só há ruínas e desmoralização. E a sociedade fica sem o serviço público direito, enquanto centenas de funcionários passam anos em meio ao lixo.
    Finalmente, esse tipo de corrupção tem um agravante.
    Como é obtido em suaves prestações, não permite ao parasita fugir para outro país, ir morar na praia ou dedicar-se à criação de cavalos. O parasita permanece grudado na instituição hospedeira da qual suga o sustento por longos períodos, até que mudem os partidos no governo.
    É uma corrupção mixa, que não produz fóruns, estradas ou pontes.
    Proponho, a quem tiver paciência de continuar o trabalho de classificação, chamá-la de "corrupção brega". Minha vontade de prosseguir na tarefa acabou. Estou indignado.

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