Imagina na Copa
"A Anatel não me representa"; "A Anac não me representa"; "Keep Calm and Let the Snake Smoke"... Estava em casa bolando cartazes para a próxima passeata quando recebi um telefonema aflito de Bucicleide.
Minha amiga estava muito inflamada, entoando slogans estudantis dos anos 60 e, de repente, sacou da manga um bordão que não estava no roteiro original das primeiras manifestações, mas que ganhou força no último domingo, na presença da presidente.
Na boca de Buci, digo, Cleide ou na passeata de que participei na segunda-feira, na região da av. Faria Lima, a mais rica de São Paulo, o chamado virou grito de guerra: "Fora, Dilma!".
Não se pode dizer que a periferia estivesse representada na manifestação que eu vi de perto. Contei três, repito, três negros no percurso que levei cerca de duas horas para completar. Colei neles para sentir a quantas andava o entrosamento entre a mauriçada e a perifa e, por duas vezes, um dos manos tentou puxar um coro começando com a palavra "povão". A repercussão foi zero. "Acho que este pessoal não conhece essa palavra", disse a ele. Moleque riu e perdeu-se na turba.
Um garoto de seus dez anos carregava um cartaz que dizia: "Abaixo o arrastão". Pessoal brincava de skate. A celebração servia de palco para o xaveco. Só faltava passar garçom com bandeja. Havia mais cartazes pedindo "paz" do que bundas. Nada contra o tom de celebração. Mas não há nada que mais irrite do que burguês achando que um conceito tão vago quanto "paz" possa comover.
Só quem nunca passou pelo desespero de uma fila do SUS, apuro ou injustiça na mão de autoridade pode considerar que "paz" seja antônimo da violência. O que a "paz" pode fazer para atenuar a miséria de quem vive sem saneamento básico? "Paz" combate falta de vaga em creche?
Quanto ao "Fora, Dilma!", eu entendo que o brado seja quase um espasmo fisiológico, que funcione como descarrego, para usar a linguagem de quem se beneficiaria diretamente da profecia autorrealizável. Mas, vem cá: há alguma acusação formal contra ela? Ou, no caso, contra Alckmin ou Haddad? O que se deseja? Temer no poder ou a volta dos militares?
Na manifestação de quarta em M'Boi Mirim, na zona sul, será que tinha cartaz protestando contra arrastão? Se essa população da periferia estivesse no estádio em Brasília teria vaiado Dilma? Lembrando que, depois da vaia do Pan, Lula foi reeleito com folga e que a presidente lidera as pesquisas de opinião com folga, certo biscoito?
Não estou dizendo que Dilma seja a última Coca-Cola do deserto. Sabemos que revelou ser um desastre retumbante. Meu ponto é que movimentos como o "Cansei" chegavam a causar antipatia pela total falta de sintonia. Os anseios de quem não tem do que reclamar da vida não comovem, como nunca chegaram a mexer com ninguém as famílias vestidas de branco desfilando no domingo pelo calçadão.
O que legitima o movimento atual é que ninguém mais aguenta que a maior cidade de um país potência continue refém de empresas de ônibus que obtêm lucros obscenos oferecendo serviços pornográficos. Não se aceita mais um modelo industrial falido, centrado na produção de "carroças" (automóveis) para entupir nossas cidades ou, no máximo, exportar para a Argentina. Ao que parece, até na hora de protestar em praça pública, há um fosso de desigualdade social a dividir brasileiros.
barbara@uol.com.br
Barbara Gancia, mito vivo do jornalismo tapuia e torcedora do Santos FC, detesta se envolver em polêmica. E já chegou na idade de ter de recusar alimentos contendo gordura animal. É colunista do caderno "Cotidiano" e da revista "sãopaulo".
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