segunda-feira, 10 de junho de 2013
O curto e o longo prazo - Renato Janine Ribeiro
VALOR ECONÔMICO - 10/06/2013
Uma revolução ética ocorreu no Brasil, nos últimos anos. Refiro-me à inclusão social, que não só melhorou a vida dos mais pobres mas também retirou da miséria a maior parte de quem vivia na pobreza extrema. Uma condição indigna, mas que deve envergonhar não o miserável e sim os que aceitam que um país "que não é pobre, mas injusto" (a expressão é de Fernando Henrique Cardoso) tenha parte significativa de sua população seriamente prejudicada porque contou com o azar, na loteria do nascimento, de vir ao mundo numa família pobre ou muito pobre.
Pouco se fala do caráter ético dessa grande mudança na sociedade brasileira. Na verdade, a maior parte do que se diz sobre ética na política, em nosso país, se limita à corrupção. Ela é inaceitável e vezes sem conta já a ataquei, aqui ou em cursos. Mas ela é difícil de medir e, assim, a acusação de corrupto facilmente se presta a ajustes de contas políticos. Mais que isso: o tema do desvio do dinheiro público é geralmente utilizado para retirar a atenção da máxima indignidade política, que é tolerar, num país que não é pobre (repito), a injustiça que é a miséria e mesmo, à medida que a economia progride, a pobreza. Alguns exemplos. Começo em 2000, quando o "New York Times" publicou uma matéria, "Rich Brazilians rise above rush-hour jams", assinada por seu correspondente Simon Romero, na qual vários entrevistados se orgulhavam de que São Paulo fosse a terceira cidade do mundo em número de helicópteros privados; poucos atentaram para o choque de tanto dinheiro dispendido em conforto particular, em face de gritantes problemas sociais na mesma metrópole (encontra-se em www.nytimes.com/2000/02/15/world/sao-paulo-journal-rich-brazilians-rise-above-rush-hour-jams.html). Recentemente, a luz lançada sobre o estilo de vida dos dois filhos de Eike Batista chamou a atenção não tanto para o luxo deles, mas para a aceitação da desigualdade, sem muitos problemas, em nosso meio social. E talvez o marco no jornalismo brasileiro, nesta área, ainda seja "Grã-finos em São Paulo", livro de Joel Silveira que abria com a reportagem-título, de 1943, seguindo-se uma matéria sobre as péssimas condições de trabalho dos mineiros de Santa Catarina: um contraste discretamente apontado, que marcou época, mas nem por isso mudou a sociedade.
Medidas como a Bolsa Família e as ações afirmativas para o ingresso no ensino superior reduzem o azar do nascimento. Ambas deveriam ser plenamente endossadas por liberais autênticos. Isso porque um princípio básico do verdadeiro liberalismo é que, se não precisa haver igualdade no ponto de chegada, ela tem de existir no ponto de partida. O ideário liberal recusa o paternalismo que há, por exemplo, quando se perdoam a indolência ou a incompetência (no "ponto de chegada"). O liberal quer a concorrência. Mas esta só é legítima se todos partem do mesmo patamar. Se um começa a corrida com chumbo preso nas canelas, está errado. É a mesma coisa que alguém entrar na competição da vida com uma formação familiar e escolar deficiente. A Bolsa Família pretende reduzir a deficiência no primeiro ponto, as ações afirmativas na segunda.
Mas, se há este forte sentido ético nas políticas de inclusão social - em especial na mais consolidada Bolsa Família, elogiada até pelo FMI e com efeitos mostrados em estudos sérios, entre os quais o recente "Vozes do Bolsa Família", de Walquiria Leão Rego - elas, justamente por serem altamente éticas, não devem durar muito tempo. Explico-me. Elas procuram atender a uma emergência. Emergência, em linguagem médica, não se confunde com urgência: porque não é apenas pressa, é risco de vida. Falando metaforicamente, a pobreza pode ser letal para a sociedade. Ela requer tratamento rápido. Eliminar a fome, por um lado, e proporcionar acesso à universidade, por outro, são duas pontas desse tratamento.
Essas medidas são uma espécie de UTI da sociedade. Mas, por isso mesmo, não podem durar muito tempo. Passado o tratamento intensivo, chega a hora da clínica. E cabe a pergunta: o que será o Brasil, uma vez atingido um nível decente de inclusão social? O que pretendemos para o país, quando tudo o que depende da sorte e do azar em nossa vida social tiver cedido a vez ao que resulta do mérito e do empenho? Porque hoje nossa sociedade não está hierarquizada com base nos méritos, mas sim na diferença de nascimento, temperada sim, mas apenas em parte, pelo empenho de cada um. Dizem que nas famílias de ricos o primeiro monta a fortuna, o filho a gasta e o neto a esgota - o que quer dizer que a incompetência pode durar duas gerações. Deveria durar menos.
Insisto. Temos duas tarefas importantes. Uma é completar os avanços sociais destes anos. Falta muito. A força do PT e a fraqueza do PSDB têm-se devido, desde 2002, à maior competência e empenho do primeiro nesta direção. Mas a outra tarefa é pensar o depois. Não haverá depois, porém, sem o antes. Não se pode usar o futuro como desculpa para não resolver, no presente, o legado ruim de um passado que inclui a escravidão. Mas os tucanos fariam bem em não minimizar a herança maldita - que não é deles, é do país - e os petistas agirão corretamente se, mesmo quando são coroados pelos elogios da diretora do FMI, tiverem a clara noção de que a Bolsa Família e as cotas na universidade não vieram para ficar, mas devem depois ser sucedidas por projetos mais sustentáveis e permanentes de país. Aí, talvez, a premência ética não seja a mesma, porque teremos saído do estado de emergência social; haverá ainda uma questão ética, mas que já não cabe no espaço da coluna de hoje.
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