segunda-feira, 10 de junho de 2013

Daniel Pellizzari

folha de são paulo
Armagedom pelo teclado
Quando meu irmão derramou a primeira lágrima, senti um pouco de culpa. Mas só um pouco
Quando eu dava uma espiada para o lado, conseguia enxergar por trás do reflexo da tela nos óculos do meu irmão um par de olhos arregalados, piscando muito rápido.
Ele tinha nove anos, um corte de cabelo em formato de capacete e farelos achocolatados de bolacha recheada nos cantos da boca.
Estava ofegando, a cabeça dizendo "não" mesmo sem se mexer, e no nosso quarto não se ouvia nada além do zumbido discreto da televisão ligada. Bem na nossa frente, em letras pretas sobre fundo branco, a pergunta tornada ainda mais sinistra pela ausência de cedilha: "LANCAR MISSEIS? (S/N)"
Tudo começou quando assisti a "Jogos de Guerra" no cinema. No filme, hoje clássico, Matthew Broderick interpreta um adolescente apaixonado por computadores que começa a invadir redes privadas e, por acaso, quase acaba dando início à Terceira Guerra Mundial. Foi então que decidi que precisava de um PC.
Aprendi a programar em BASIC, ganhei um TK 85 da Microdigital e ali estávamos nós naquela tarde de 1985, diante de um programa feito por mim que simulava a invasão de redes de computadores até chegarmos (sem querer, como no filme) ao sistema de mísseis nucleares dos EUA. Para meu irmão, tudo aquilo estava acontecendo de verdade.
Quando ele derramou a primeira lágrima ao me ver apertar S no teclado macio para confirmar o lançamento de 15 mísseis em direção à União Soviética, senti um pouco de culpa. Mas só um pouco.
Meu irmão cresceu e comecei a usar computadores para outras coisas. Só reencontrei prazer semelhante em 2001, quando saiu "Uplink" para PC (R$ 12 na GOG.com; há versões para Mac e Linux e em 2012 o game foi lançado para iPad e Android). É um título da Introversion, pequena desenvolvedora que em 2006 lançou também "Defcon" (R$ 17 no Steam), game de estratégia dedicado ao gerenciamento de uma guerra termonuclear global, acabando com qualquer dúvida de que "Jogos de Guerra" inspirou toda uma geração de moleques oitentistas apavorados com a possibilidade de uma catástrofe atômica e fascinados por tecnologia.
Em "Uplink", uma cruza de simulação com RPG, o jogador assume o papel de um hacker contratado para desvendar um enredo de tons conspiratórios, em que uma grande corporação quer implodir a internet e dominar o mundo.
A interface está mais para a simulação hollywoodiana de filmes como "Hackers" (1995) que para o cotidiano dos invasores de redes do mundo real, mas isso não diminui em nada o envolvimento. É possível passar noites em claro tentando descobrir uma brecha em um novo sistema. Só mais um. Só mais um.
Mesmo lançado há 11 anos, "Uplink" conta até hoje com uma comunidade muito ativa de jogadores, que produzem incessantes modificações e expansões.
Confiro os novos cenários sempre que são anunciados, mas, enquanto vou me intrometendo nos sistemas, obtendo dinheiro para comprar novos programas e flertando com o armagedom ao alcance do teclado, sempre sinto falta da tensão ingênua do meu irmão, que hoje nem usa mais óculos.
Talvez esteja na hora de apresentar o conceito de guerra nuclear ao meu filho de cinco anos.

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