Masp exibe pinturas e gravuras de Lucian Freud, artista que exaltou a realidade retratando bem de perto a imperfeição humana
Um dos pintores mais importantes do século 20, Freud, que morreu há dois anos em Londres, onde se radicou depois de fugir da Alemanha nazista, fez fama e fortuna retratando pessoas que encontrava no dia a dia, de sua mulher ao açougueiro.
Também retratou personagens do underground londrino, como o travesti Leigh Bowery, quase sempre nus e em poses que fogem do padrão.
São gordos, suados, carecas. De pernas abertas, o sexo exposto, rugas e marcas de expressão exacerbadas, a pele como espécie de histórico sulcado de vidas nada fáceis.
Numa mostra que começa hoje no Masp, está um apanhado geral da obra de Freud. São seis pinturas de quase todas as fases de sua carreira, dos anos 1940 aos anos 1980, e mais de 40 gravuras e fotografias de seu ateliê, onde seus modelos chegavam a posar ao longo de anos para uma única tela ficar pronta.
Uma delas foi Sue Tilley, fiscal do serviço social britânico, que posou nua para Freud. Seu retrato, uma mulher gigantesca, seus volumes de pele e gordura transbordando de um sofá kitsch, foi arrematado em leilão por R$ 75,4 milhões há 18 anos.
Mas não é só o preço do quadro nem o peso de Tilley que denunciam a grandeza de Freud. Artista que despontou no auge das estripulias dos Jovens Artistas Britânicos, entre eles Damien Hirst e Tracey Emin, Freud resistiu aos truques de mercado e se manteve figurativo, no sentido quase clássico do termo, fiel ao retrato acima de tudo.
Esse e outros retratos nada convencionais acabaram tirando o artista da reclusão.
"Uma apreciação completa da obra de Freud só foi possível nos últimos anos", diz Richard Riley, curador da mostra no Masp. "Até pouco tempo atrás, ele era visto como uma figura reacionária à arte contemporânea, um excêntrico fora da realidade."
Mas é a realidade que grassa nas telas de Freud mais do que em qualquer obra de seus contemporâneos. "Ele tinha fascínio pela textura da pele e montanhas de carne humana", diz Riley. "É um retrato inabalável e sem medo da forma humana verdadeira."
TODOS OS POROS
David Hockney, artista britânico que posou para Freud, lembra com incômodo da sensação de ser examinado até o último poro, com Freud aproximando o seu rosto do dele ao trabalhar no retrato.Mas o artista não começou pintando dessa forma. Seus primeiros quadros, na opinião de Teixeira Coelho, curador do Masp, eram alegorias simbólicas, longe do hiper-realismo que o consagraria umas décadas mais tarde.
"Jovem com Rosas", tela mais antiga da mostra, é um retrato de sua primeira mulher, Kitty Epstein, em chave expressionista, seus olhos enormes e o rosto também anguloso e desproporcional.
Mais adiante, "Jovem num Vestido Verde", retrato de sua segunda mulher, Caroline Blackwood, é uma espécie de transição na obra, um retrato fechado e mais naturalista, só do rosto, como se tentasse extrair de seu olhar alguma espécie de confissão.
Talvez porque suas sessões tomassem ar de interrogatório, possível herança do avô Sigmund Freud, pai da psicanálise. "Era essa a atitude, ele tentava chegar o mais perto possível, o foco fechado", diz Coelho. "Ele buscava aquilo de mais humano na pessoa."
'Modelo' narra arte de posar para Freud
O crítico inglês Martin Gayford, autor de um livro sobre a experiência, conta como foi ser retratado pelo artista
"Ele era extravagante com relação ao tempo", diz autor, que terá gravura de seu rosto exposta em museu de SP
O público que espiar estes rostos expressivos, os corpos nus ou mesmo a gravura do galgo Pluto (não o da Disney) esparramado no chão não pode calcular quanto tempo estes modelos passaram em frente ao artista britânico.
A Folha entrevistou um destes "retratados".
Martin Gayford, o "modelo", conta que, no início, imaginou que a tarefa não seria distinta de uma visita ao barbeiro. Iria ao estúdio e ficaria sentado, sem fazer nada.
Mas a tarefa de posar para o grande artista britânico se revelaria "a maior prova de persistência" de sua vida.
Crítico de arte e escritor renomado, Gayford dedicou um livro a essa experiência.
"Man with a Blue Scarf" (Homem com um Cachecol Azul), publicado no Reino Unido em 2010 (editora Thames & Hudson), converteu-se de imediato numa obra obrigatória sobre Lucian Freud e num dos livros recentes mais originais sobre arte.
O homem com o cachecol era, naturalmente, o próprio Gayford, que entre 2004 e 2005 passou cerca de 160 horas sentado em frente ao esguio artista, então com mais de 80 anos. Ele pintou um retrato a óleo do crítico, obra que não vem ao Masp e que hoje faz parte de uma coleção privada na Califórnia (EUA).
Ao final do processo, como era de praxe para as pinturas de sua última fase das quais mais gostava, Freud fez uma gravura retratando o crítico --esta sim faz parte da mostra do Masp.
MÉTODO E TEMPO
No livro, Gayford, 61, repassa a trajetória artística de Freud e narra seu meticuloso processo de trabalho, que inclui longas conversas com os modelos fora do ateliê. Numa delas, o pintor lhe perguntou onde comprar uma balança de banheiro. Quando o autor quis saber o motivo --Freud lhe parecia bem magro--, o artista retrucou: "Qualquer grama a mais faz diferença quando se passa dez horas por dia de pé, pintando".O tempo fazia parte da metodologia. "Há algumas maneiras de prestar atenção em algo", diz Gayford. "Uma é usar uma lente de aumento, como Freud parece ter feito nos anos 1940 e 1950. Outra é gastar tempo se concentrando naquilo que se observa."
Nesse segundo ponto, diz Gayford, Freud era extravagante: investia tanto tempo quanto a pintura parecia pedir a ele. "Ele era incapaz de pintar sem o modelo diante dele. E os modelos humanos são diferentes de objetos em muitos sentidos, um deles o de que são conscientes da passagem do tempo."
A pedido da Folha, Gayford, autor de diversos livros (o único publicado aqui foi um sobre David Hockney, da editora DBA), examinou a lista de obras que vem ao Masp.
"Faz falta na mostra alguma das pinturas dos últimos 25 anos de Freud, sua fase mais intensa, mas a exposição tem um par de pinturas fortes, boas gravuras e serve como um ponto de partida."
Por economia, Masp traz poucas pinturas
DE SÃO PAULO
Das 78 obras na mostra de Lucian Freud que o Masp abre hoje, só seis são pinturas, embora esse seja o meio de expressão que o consagrou. Na exposição do italiano Amedeo Modigliani, em 2012, o mesmo museu só mostrou nove das 400 telas do artista.
No caso do holandês Johannes Vermeer, sua "Mulher de Azul Lendo uma Carta" era a única obra da mostra solitária, mais uma ação de marketing do museu Rijksmuseum, de Amsterdã.
Nos três casos, o argumento do museu é falta de verbas.
Lembrando que uma tela de Freud não valeria menos que R$ 60 milhões, o valor do seguro para trazer 20 delas seria "inviável", segundo o curador do Masp, Teixeira Coelho. Ele diz que orçamento da mostra atual é R$ 1 milhão.
"Essa exposição começou como uma mostra só de gravuras. Temos feito várias mostras de obras sobre papel e gravuras", afirma Coelho.
De fato, a mostra de Freud chega ao Masp depois de mostras de gravuras de Goya, colagens de Max Ernst e trabalhos no mesmo suporte do renascimento alemão.
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