Não aguento mais escrever sobre os protestos, então volto-me contra o Congresso Nacional. Dedico a coluna de hoje a deslindar um daqueles casos em que parlamentares criam uma enorme confusão para todos com o propósito único de ganhar alguns pontinhos em seu nicho de eleitores. Atitudes como essa respondem pelo menos em parte pela crise de descrédito em que caiu o Legislativo.
Já escrevi sobre o Estatuto do Nascituro (projeto de lei 478/07) num artigo publicado há pouco na edição impressa da Folha, mas a coleção de sandices presentes na proposta legislativa é tamanha que acho que o tema merece ser tratado de forma mais detalhada.
Como os leitores que costumam frequentar esta coluna já devem saber, acho que o aborto é um direito da mulher. Ninguém deve ser obrigado a servir de hospedeiro para um outro ser se não quiser. Mas mesmo quem não pensa como eu e considera adequada a atual legislação brasileira, que permite a interrupção da gravidez apenas em caso de estupro e perigo de vida para a mãe, deve ficar com um pé atrás em relação ao estatuto.
Bem ao estilo dos criacionistas, ele joga com os espaços vazios. Como a meta dos proponentes da matéria é ficar bem com os grupos religiosos sem indispor-se muito com quem não o é, eles perseguem uma espécie de ambiguidade castradora. Em princípio, o estatuto não introduz nenhuma modificação substancial no Código Penal nem em outros diplomas legais que regulam a matéria, como o Código Civil, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Processo Civil, mas cerca o embrião de tanta retórica de inspiração religiosa e parafraseia as leis de forma tão imprecisa que o resultado inevitável, se a norma vier a vigorar, será um pouco de caos nas interpretações e na jurisprudência.
Resolvida essa preliminar metodológica, passemos ao texto proposto que, de tão desastrado e inepto, muitas vezes resvala no humor involuntário. Os primeiros problemas graves aparecem logo no artigo 2º, que define o nascituro como "ser humano concebido, mas ainda não nascido", incluindo os zigotos "concebidos ´in vitro´, os produzidos através de clonagem ou por outro meio científica e eticamente aceito".
Sem querer, os autores oferecem a cientistas inescrupulosos um meio perfeito de desobrigar-se de cumprir a lei. Como limitaram a abrangência do termo a embriões produzidos por meios éticos, basta cometer uma infração menor no processo (como deixar de obter o consentimento esclarecido das doadoras de óvulos) para escapar das mais severas sanções penais previstas. É a liquidação dos delitos. Cometa dois e não vá para a cadeia.
Bem mais preocupantes são as implicações da definição proposta. Igualar embriões, inclusive os que nem chegam a ser implantados no útero, a bebês causa uma série de distorções e contrassensos lógicos que precisam ser repelidos pelo Direito, sob pena de desorganizar bastante a sociedade.
Essa noção de nascituro, combinada com o art. 8º, que determina que o SUS deve dedicar aos embriões ainda não nascidos a mesma prioridade dada a crianças, torna uma geladeira com 200 mórulas inviáveis 200 vezes mais importante do que um bebê agonizante. O administrador hospitalar zeloso que tivesse um único gerador de emergência disponível teria de dar preferência ao freezer da reprodução assistida e não aos respiradores da UTI infantil, como recomenda o bom senso.
O festival de piadas prontas não acaba aqui. Os arts. 3º, 4º e 5º desfilam uma série de direitos de nascituros que desafiam a imaginação. São coisas como direito à honra, dignidade, respeito, liberdade e convívio familiar e a proibição de que sejam explorados e oprimidos. Mas o que pretende o legislador com isso, já que a maioria dos itens elencados exige algum nível de consciência para fazer sentido? O que é a liberdade do feto? A única coisa de que ele poderia efetivamente ser liberto é o útero, mas, a menos que essa libertação ocorra bem no final da gravidez, essa é uma péssima ideia.
O texto tem recebido críticas por criar a chamada bolsa-estuprador, que é o benefício que seria dado a mulheres que, mesmo tendo sido submetidas a violência sexual, optassem por seguir em frente com a gravidez. Paradoxalmente, considero essa a única medida sensata do estatuto. Se o governo já concede auxílio para quem põe filhos na escola, para quem é viciado em drogas, para quem não tem outra fonte de recursos, não vejo nenhum motivo para privar vítimas de estupro de algo parecido.
Bem mais grave, me parece, é a criação da figura jurídica do aborto culposo. O diploma prevê pena de um a três anos de detenção para quem causar culposamente (sem intenção, mas por negligência, imprudência ou imperícia) a morte de nascituro. Aqui o legislador parece ignorar que a gravidez é um processo bastante instável. De acordo com Randolph Nesse e George Williams em "Why We Get Sick" (por que ficamos doentes), 87% dos óvulos fertilizados jamais chegam a implantar-se no útero ou são abortados no início da gravidez. Coisas relativamente banais como uma descarga de adrenalina podem precipitar a rejeição. Não é difícil imaginar uma situação na qual uma colisão besta de veículos leve a mulher a perder o embrião. O sujeito que bateu o carro, em vez de apenas acionar seu seguro, teria de responder por aborto culposo, um crime de ação pública incondicionada, isto é, que o promotor precisa necessariamente levar em frente.
Na mesma linha, são temerárias as disposições do estatuto sobre o direito de herança para o nascituro. É verdade que o Código Civil prevê essa possibilidade em seu art. 1.798, mas a limita aos casos em que o concepto já existe quando da abertura da sucessão (morte do "de cujus"). Como o art. 17 do estatuto é bem mais vago e se limita a afirmar que o nascituro tem legitimidade para suceder, ficam abertas as portas para o desconhecido. Não é impossível que todas as mulheres que um dia tiveram um óvulo fertilizado, mas cuja gravidez não prosperou se considerem sucessoras do embrião que nunca nasceu e, assim, se legitimem como herdeiras de seus namorados. Aqui, o chamado golpe da barriga ganharia um novo significado e nem precisaria de uma barriga.
O Estatuto do Nascituro é uma peça jurídica que, com o perdão do mau trocadilho, jamais deveria vir à luz. Numa interpretação benigna, ele é inútil; numa mais realista, trata-se de apostar na confusão para restringir ainda mais o já limitado direito ao aborto das brasileiras. É claro que cada um é livre para fantasiar com os seres superiores que quiser e interpretar livremente suas intenções. Mas, se for para introduzir um pouco de lógica e ciência no debate, é forçoso concluir que, se de fato existe uma divindade que concebeu e desenhou o mundo e ela é minimamente coerente, este ser não tem nada contra o aborto, já que estabeleceu uma taxa natural de dispensa de embriões humanos de mais de 80%.
PS - Saio em férias pelas próximas semanas, dando um pouco de paz ao leitor. A coluna da versão impressa ainda continua até domingo.
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na versão impressa da Página A2 às terças, quartas, sextas, sábados e domingos e às quintas no site.
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