Estado de Minas - 13/07/2013
O debate em torno do que é ou não é cultura
é antigo e polêmico. Quem agora mete a colher de pau nessa cumbuca é o
escritor peruano Mario Vargas Llosa, que tem sua diatribe vitaminada
pelo fato de ter conquistado o Nobel de Literatura em 2010. Autor de
grandes romances, como Conversa na Catedral e A festa do bode, Vargas
Llosa fez parte de uma geração que se formou entre o marxismo e o
existencialismo, viveu na França nos anos 1960 e integrou a turma dos
autores latino-americanos que foram responsáveis pela literatura que
dominou o cenário internacional por boas décadas.
Da esquerda
para a direita, ou dono de posições liberais, como todo direitista gosta
de assumir, Vargas Llosa renegou o marxismo e o existencialismo, entrou
para a política concorrendo à presidência de seu país em 1990, perdendo
para Alberto Fujimori. Em campanha, defendeu o ideário neoliberal que
tomava conta do mundo de norte a sul. Depois da derrota, recolheu as
armas ideológicas, se tornou intelectual cosmopolita e passou a escrever
sobre política, além de manter produção de respeito no campo literário.
Hoje é professor de universidades americanas e publica em jornais de
todo o mundo.
De certa forma, Vargas Llosa compõe com Gabriel
García Márquez um par de antípodas que, nascidos no mesmo solo
latino-americano e cultores do romance de alto nível, se separaram
primeiro em política e depois em estética. O colombiano, hoje silenciado
pela doença, se aproximou da mesma Cuba que Llosa renegou depois de sua
paixão de juventude. De seus amores juvenis, costuma confessar, ficou
apenas Flaubert e Madame Bovary. Em matéria de gosto literário, Llosa é
inatacável.
Com o tempo, a sofisticada literatura fantástica de
García Márquez se popularizou e perdeu seu lugar de destaque para uma
nova geração que virou as costas para o realismo mágico de forma
determinada e até raivosa. Hoje é comum entre os novos escritores
renegar o autor de Cem anos de solidão, como quem se livra de um
entulho. O que talvez não percebam é que, ao buscar batismo na
literatura prestigiada dos EUA e Europa, não andam necessariamente para a
frente. No seu tempo, Márquez, Cortázar, Llosa, Onetti e Borges não
eram os melhores escritores de seus países, mas do mundo.
Mario
Vargas Llosa trilhou a via contrária e vem se tornando cada vez mais
respeitado, se transformando num clássico moderno. O fato de ter passado
a escrever romances de fundo histórico é um sinal dessa busca de
equidistância das disputas da república das letras. Nesse sentido, até
mesmo a derrota política e a retirada para um lugar mais crítico que
ideológico reforça sua postura atual. E é desse lugar que ele agora se
insurge para atacar a banalização da cultura que ronda o mundo com seu
espectro de bobagens. É esse o tema de seu novo livro, A civilização do
espetáculo – Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura (Editora
Objetiva, 208 páginas, R$ 34,90).
Efêmero e banal O diagnóstico é de
aceitação geral: nunca a chamada alta cultura esteve tão desprestigiada.
Vivemos o tempo da banalização das artes (que por vezes beira a
impostura), da frivolidade em política (traduzida nos mais diversos
modelos de populismo) e de triunfo absoluto do jornalismo
sensacionalista, em que uma celebridade vale por muitas ideias. A
palavra perdeu para a imagem, o conceito para a sensação, a inteligência
para a diversão. A esse panorama Llosa dá o nome de civilização do
espetáculo.
A perda de substância é grave. Não se trata apenas da
troca de uma literatura sofisticada por best-sellers, com sua
característica planura, mas do entorpecimento da crítica. A arte, lembra
o romancista, foi sempre uma espécie de consciência que não permitia
que virássemos as costas para a realidade. Hoje, desviar pela chicana do
entretenimento é a norma no campo da cultura. A superficialidade deixou
de ser um risco para ser um método.
Vargas Llosa começa seu
ensaio dialogando com outros diagnósticos sobre a situação da cultura.
Como a obra Notas sobre a definição de cultura, de T. S. Elliot, de
1948, que defende, entre outros temas, a força da religião e da
transcendência. Em seguida, busca referências em textos de Guy Debord, A
sociedade do espetáculo, de 1968; Algumas notas para definição de
cultura, de Georges Steiner, de 1971; e finalmente A cultura-mundo, de
Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, de 2010. São autores que, por caminhos
diversos, alimentam o pessimismo em relação à cultura, com a soma de
muitos sintomas teratológicos: deterioração da palavra, alienação
política, coisificação e mundialização com tendência a nivelar por
baixo. Com esse trampolim, Vargas Llosa se joga em sua crítica pessoal.
Capítulo
a capítulo ele vai compondo uma fenomenologia da dissolução da cultura.
Começando pela espetacularização e banalização que atinge todas as
artes, financiada de maneira astuta pelos mercados e pela indústria
cultural, que acaba por desaguar no jornalismo vazio e na ausência de
crítica que hoje dominam os meios de comunicação. Na sequência, desanca
com os pós-modernismos em filosofia, aponta para a troca do erotismo
pela pornografia e ataca a condescendência em política, que permite a
emergência das tiranias de toda espécie (com o desapego à lei e à
democracia). Segue identificando a emergência de uma sociedade que perde
as referências religiosas e não coloca nada no lugar, abrindo o flanco
para os fundamentalismos reativos, e questionando a cultura digital em
sua busca obsessiva pela superficialidade.
O que conservar Mario
Vargas Llosa é conservador, mas é inteligente. Seu ataque à incultura
pode soar como chororô passadista, de quem lamenta que os valores estão
se perdendo e que antes era bem melhor. Pode ainda ser acusado de
defender posturas elitistas, contra a democratização da arte propiciada
pelos meios tecnológicos, em favor de uma produção sofisticada e
limitada a poucos fruidores, quase sempre os mais ricos. Em outras
palavras, ele seria um passadista, elitista e conservador.
A
recusa pura e simples da argumentação teórica e dos exemplos históricos e
estéticos de Vargas Llosa não é o melhor caminho. Como em todo debate
de fundo ético, o mais provável é que os dois lados estejam certos. Há
algum tempo, o semiólogo Umberto Eco dividiu os analistas culturais em
dois grupos: de um lado os apocalípticos, que diziam que a cultura
popular iria destruir a civilização; na outra trincheira, os integrados,
que saudavam a democratização e avanço da cultura em sua porosidade
para o novo que vinha, sobretudo, dos excluídos do campo da cultura
entronizada (excluídos pela estética e pela posição de classe).
O
livro do autor de Tia Júlia e o escrivinhador (não por acaso sobre um
autor de novelas radiofônicas, o que mostra que a cultura popular sempre
esteve por perto) é um panfleto raivoso, nem sempre muito bem
informado, mas que tem no fundo um desejo de defender o que deve ser
conservado para que o homem não deixe de trilhar o caminho da
perfectibilidade. Nesse ponto, conservadores e revolucionários parecem
ter o mesmo desejo: ir adiante. Talvez por isso o melhor seja ler A
civilização do espetáculo como um integrado e levar adiante o debate
como um apocalíptico.
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