Santa e pecadora
Brasil recebe este mês a Jornada Mundial da Juventude, maior evento católico em congregação de jovens,
que terá a presença do papa Francisco. História da Igreja é feita de momentos heroicos e degradantes
J. D. Vital
Estado de Minas: 13/07/2013
Depois que Jesus morreu crucificado, ressuscitou e
subiu aos céus, aqueles a quem Ele chamava de amigos permaneceram em
Jerusalém, reunidos “na sala de cima onde costumavam ficar”, segundo os
Atos dos apóstolos. Não passavam de 120 seguidores, entre eles Maria, a
mãe de Jesus, os apóstolos e algumas mulheres piedosas.
Eles
tinham acompanhado o Mestre a Jerusalém para a celebração da Páscoa. Mas
dera tudo errado. Membro do bando de “vagabundos” sem trabalho e
endereço fixos que seguiam o Nazareno, Judas Iscariotes traiu Jesus e o
entregou aos sacerdotes do templo. Esses o acusaram de blasfêmia e o
colocaram nas mãos de Pôncio Pilatos, nomeado pelo imperador Tibério
como o quinto governador da província romana da Judeia.
A
crucificação era um espetáculo banal naqueles tempos, segundo o
historiador Flávio Josefo. Três décadas antes, quando Jesus tinha entre 2
e 3 anos, o general Varo incendiou cidades da região, fez milhares de
prisioneiros e crucificou 2 mil judeus que desafiaram o império de
César.
Agora, os primeiros cristãos escondiam-se. Oravam,
repartiam o pão e ouviam os apóstolos. Inauguraram assim a tradição de
viver em assembleia permanente e daí surgiu o nome da instituição:
eclésia, assembleia em grego; igreja, em português.
Depois do
episódio de Pentecostes, quando línguas como que de fogo desceram sobre
eles, os discípulos perderam o medo. Pedro foi pregar em praça pública.
Havia muitos judeus da diáspora em Jerusalém e, cada um em seu idioma,
ouviu Pedro. Muitos aderiram à nova fé e foram os primeiros missionários
do cristianismo. De volta às suas cidades, estabeleceram as primeiras
comunidades cristãs em Antioquia e Alexandria, no Egito; em Damasco, na
Síria; e na própria Roma.
Em Jerusalém, a igreja primitiva deu
passos para recompor seu grupo dirigente depois do suicídio do traidor e
para se organizar como a instituição religiosa que, 2 mil anos depois,
ultrapassaria a casa de 1,214 bilhão de batizados, segundo o Anuário
pontifício de 2013.
Pedro ganhou o reconhecimento de líder da
comunidade. Ele tomou a iniciativa de encontrar alguém para substituir
Judas no colégio dos 12 discípulos, chamados de apóstolos, “enviados” em
grego. Apresentaram-se dois candidatos – José e Matias. Na dificuldade
de escolher um, rezaram pedindo luz divina e, em seguida, tiraram a
sorte entre os dois homens. A sorte caiu sobre Matias.
Dessa
forma, ficaram sacramentadas duas tradições: o primado de Pedro, mais
tarde bispo de Roma e primeiro dos 266 papas da Igreja; e a escolha dos
sucessores dos apóstolos para a recomposição do colégio episcopal,
atualmente com cerca de 5 mil bispos.
Logo em seu nascedouro, a
Igreja foi marcada por desavenças e o convívio entre santos e pecadores.
Ainda hoje, durante as missas celebradas diariamente no planeta pelos
413 mil padres (22 mil no Brasil) há uma oração no Canon, logo após a
consagração eucarística, em que o mistério divino e humano da
instituição é relembrado. O sacerdote convida os fiéis a rezarem pela
Igreja, santa e pecadora. Pecadora como no episódio do casal Ananias e
Safira, que contrariando o costume da comunidade primitiva, vendeu um
terreno e escondeu para si parte do valor da venda.
Religião de sapateiros
Com o reforço de Paulo de Tarso, a Igreja ganhou ares cosmopolitas.
Judeu fundamentalista, Paulo considerava hereges os seguidores de Jesus.
De perseguidor dos cristãos converteu-se em principal propagandista da
“boa notícia” (evangelho, em grego) expandindo a nova religião até os
confins do império romano.
Para isso, Paulo não temeu enfrentar o
número um do cristianismo. Ele se posicionou contra o conservadorismo de
Pedro que, temeroso em contrariar a comunidade de Jerusalém, hesitava
se o cristão precisava seguir as normas do judaísmo – a circuncisão, por
exemplo. Paulo venceu.
Na adolescência da Igreja, o
cristianismo é visto como uma seita de gente humilde, de escravos e
populacho. Ou, na palavra de Aulus Cornelius Celsus (25 a.C – 50 d.C),
“uma religião de cardadores (ajudantes de tecelagem), sapateiros e
engomadores”. Mais tarde, alastra-se entre gente do Exército e da
nobreza.
O sucesso entre os romanos custou caro à jovem
instituição, considerada clube de hereges. O imperador Nero, morto no
ano 68, criou um instrumento jurídico para legalizar a perseguição aos
cristãos. “Non licet esse christianos” (Não é lícito ser cristão),
segundo relato do cartaginês Tertuliano.
O apóstolo Pedro foi
crucificado nesse período, no ano 64. Não se sabe quantos cristãos foram
mortos durante as perseguições romanas, talvez alguns milhares. Mas a
religião de Jesus crescia e multiplicava-se porque, segundo Tertuliano,
“o sangue dos mártires é semente de cristãos”.
Os cristãos
refugiaram-se nas catacumbas, que ainda hoje podem ser visitadas em
Roma, uma delas a de São Calisto. O imperador Valeriano (253–260) tentou
extirpar o cristianismo perseguindo os cabeças da Igreja, ou seja, os
bispos, sacerdotes e diáconos.
Nos períodos de caça aos
cristãos, como nos dias da mais cruel perseguição desencadeada pelo
imperador Diocleciano (302 a 311), a face humana do cristianismo não
raras vezes ofuscou o brilho dos mártires. No livro de Hermas, de meados
do século 2, há registro de casos de apostasia de cristãos, que para
fugir da morte aceitam sacrificar aos deuses pagãos. Noticia-se também
sobre um mal que se pensava contemporâneo: os ricos não aceitavam ficar
ao lado dos pobres nas assembleias eucarísticas. A corrupção enlameava
alguns diáconos encarregados da administração dos bens materiais da
Igreja antiga.
Contudo, os cristãos conquistaram a admiração dos
pagãos, como se pode ler em um texto de autor desconhecido,
provavelmente escrito em Alexandria entre os anos 90 e 200, a “Carta a
Diogneto”.
Os cristãos são apresentados como gente comum, igual a
todo mundo. “Casam-se como todos e geram filhos, mas não jogam fora os
bebês. Colocam em comum a mesa, mas não a cama. Estão na carne, mas não
vivem segundo a carne. Habitam na Terra, mas têm a sua cidadania no céu.
Obedecem às leis estabelecidas e com a sua vida superam as leis. Amam
todos e por todos são perseguidos. Não são conhecidos e são condenados.
São mortos e retornam à vida. São pobres e a muitos fazem ricos; não têm
nada e abandonam tudo. São desprezados e nos desprezos têm glória. São
ultrajados e proclamados justos. São injuriados e abençoam, são
maltratados e honram. Fazendo o bem e são punidos como malfeitores;
condenados, se alegram como se recebessem a vida...”.
A partir
do “Edito de Milão” (313) e com a proteção do imperador Constantino, a
Igreja sai da clandestinidade. Em 389, o cristianismo foi declarado
religião oficial do Estado pelo imperador Teodósio I. Um século depois,
com a invasão dos bárbaros e a queda do Império Romano, a Igreja
sobrevive ao caos. E substitui, de certa forma, a antiga estrutura
imperial, com seus bispos elevados à condição de administradores das
províncias e de príncipes.
Esse processo levou à criação dos
estados pontifícios em 756, pelo papa Estevão III. Formados por
territórios do centro da Itália, os estados eram governados pelo
soberano da tríplice tiara, o papa. A tiara papal, um chapéu em forma de
cone com três coroas, foi usada pela última vez por Paulo VI, coroado
em 1963. Ela foi arrematada em 1968 pelo cardeal americano Francis
Spellman, arcebispo de Nova York, e o dinheiro destinado aos assistidos
pela Igreja na África.
Polêmica por natureza A Igreja enfrentou,
desde seu início, crises internas, com disputas teológicas sobre
questões variadas, como a natureza de Jesus. Os movimentos gnósticos
foram condenados como heréticos. Naqueles tempos, conta o frade
dominicano Oswaldo Resende, prior dos dominicanos em Belo Horizonte,
“discutia-se teologia com a mesma paixão com que hoje se discute
futebol”.
Com a tolerância religiosa dos novos tempos, a Igreja
passa a enfrentar uma ameaça que deixou marcas na sua organização: a
ingerência do Estado. O imperador Constantino convocou e presidiu o
primeiro concílio ecumênico, realizado em Niceia, no ano de 325, com a
participação de 318 bispos, para combater o arianismo. Padre de
Alexandria, Ário ensinava que Jesus possuía uma divindade secundária, de
segunda classe.
Mesmo sem saber que o texto tem o dedo imperial
de Constantino, ainda hoje os cristãos professam o “Credo
Niceno-Constantinopolitano” em dias especiais da liturgia. É um “Creio
em Deus Pai” um pouco mais longo, elaborado para refutar as teses
heréticas de Ário.
Foram muitos os movimentos dissidentes, entre
eles, os cátaros (puros). Pelágio não aceitava a doutrina do pecado
original. Macedônio negava a divindade do Espírito Santo. Juliano foi
chamado de apóstata. Nestório, bispo de Constantinopla, negou que a
Virgem Maria fosse mãe de Deus. Frei Oswaldo Resende diz que esses
movimentos heréticos podem ser definidos como agrupamentos de iluminados
que se proclamavam os escolhidos de Deus.
Eles foram
combatidos pelos “padres da Igreja”, como São Jerônimo, São João
Crisóstomo, Santo Ambrósio e Santo Agostinho. Seus escritos, a
Patrística, consolidaram os fundamentos doutrinais do cristianismo e sua
opção pelos imperfeitos e os pecadores.
Segundo frei Raniero
Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia nos tempos de Bento XVI,
depois de superar a batalha contra o arianismo, a Igreja desenvolveu um
grande esforço para levar o evangelho aos povos bárbaros da Inglaterra,
Holanda, França e Alemanha. Ele conta: “Um momento decisivo nesta
empreitada foi a conversão do rei merovíngio Clodoveu, que, na noite de
Natal de 498, ou 499, se deixou batizar pelo bispo de Reims, São
Remígio”. Então candidato a governador de Minas, Tancredo Neves
apreciava citar esse episódio para fustigar o governo João Batista
Figueiredo, que mudara de opinião sobre a organização partidária na
primeira eleição direta para os governos estaduais. Provavelmente,
Tancredo Neves diria hoje o mesmo do PT de Lula no governo.
Declamada
de cor por Tancredo e relembrada por Cantalamessa, a frase famosa foi
dita pelo bispo Remígio no momento de batizar Clodoveu: “Mitis depone
colla, Sigamber; adora quod incendisti, incende quod adorasti”. “Inclina
humildemente a nuca, Sigambro altivo; adora o que tu queimavas, queima o
que tu adoravas”.
Nesse período, o italiano Benedetto da Norcia,
nascido em 480, fundou a Ordem dos Beneditinos – a mais antiga ordem
monástica do mundo. A Regra dos Monastérios foi inspiração para as
ordens religiosas. São Bento morreu na Abadia de Monte Cassino,
destruída pelo bombardeio aliado e por pracinhas brasileiros durante a
Segunda Guerra Mundial e posteriormente restaurada.
Sopro sobre o barro
Em mais de 2 mil anos de história, a
Igreja mostra que, mesmo fundamentada em mensagem universal, se esmerou
em responder às demandas da política e da cultura, mas nem sempre de
maneira muito santa
J. D. Vital
Na virada
do segundo milênio, a unidade cristã sofreu um abalo que ainda divide a
Igreja: o cisma do Oriente. Em 1054, o patriarca de Constantinopla,
Miguel Cerulário, da Igreja Bizantina, rompeu com a Igreja de Roma.
Fazia algum tempo que os orientais não reconheciam a supremacia do papa.
Anos conturbados se seguiram na cátedra de Pedro, com papas
depostos, dissolução de costumes e lutas entre cardeais. Os papas já não
subiam aos altares para a devoção dos católicos. De Pedro, o primeiro,
até João I (523–526), o 53º papa, todos os sumos pontífices foram
declarados santos, com exceção de dois: Libério (352–366) e Anastácio II
(496–498). A maioria morreu mártir.
Os tempos mudaram. Na
Igreja, prosperam a simonia e o nicolaísmo (concubinato de padres, que
têm mulheres e filhos). Roma virara terra de escândalos entre os anos de
880 e 950 – afirmam os historiadores.
Em sua sina de santa e
pecadora, a Igreja gera naqueles tempos obscuros a maior expressão do
cristianismo após Jesus – Francesco Giovanni di Pietro Bernardone (1182 –
1226), São Francisco de Assis. Padroeiro da ecologia, sua influência
ultrapassa os limites do cristianismo e encanta a humanidade. E perdura
com tamanha força que até no filme A dama de ferro, a primeira-ministra
Margareth Thatcher, vivida por Meryl Streep, assume o governo inglês em
1979 recitando os versos franciscanos – “onde houver discórdia que eu
leve a união”.
Na Idade Média, o cristianismo cria monastérios e
catedrais. Monges copistas preservam obras da cultura universal. A
arquitetura religiosa brota em toda parte da Europa. Santo Tomás de
Aquino (1225 – 1274) recupera o pensamento de Aristóteles para a
filosofia e na “Suma Teológica” sistematiza a doutrina cristã.
Em
boa convivência com a Igreja Oriental, os muçulmanos durante séculos
permitiram o livre acesso dos cristãos a Jerusalém. Após o cisma, a
situação mudou. O papa Urbano II organizou em 1095 a primeira expedição
de libertação, que recebeu o nome de cruzada porque os soldados
estampavam uma grande cruz em suas vestimentas.
Com a morte de
Clemente IV, em 1268, o trono de Pedro permaneceu vago quase três anos,
devido às disputas de poder. Como os cardeais não chegavam a um
consenso, o povo romano trancou-os, “cum clave”, ou seja, com chave, até
que elegessem o papa. A medida deu resultado. Em 1º de setembro de
1271, foi eleito o cardeal Teobaldo Visconti com o nome de Gregório X.
Daí em diante, a eleição dos papas ganhou o nome de conclave.
Na
sucessão do papa Nicolau IV, em 1292, aconteceu outro período de
vacância no Vaticano, embora os cardeais fossem apenas 12. Em 5 de julho
de 1294, finalmente, a Igreja conheceu o novo papa. E ele era um santo.
Foram buscar o monge beneditino Pietro Del Morrone, que vivia em uma
caverna, para calçar as sandálias do Pescador.
Aos 79 anos,
montado em um burro, Celestino V entrou na cidade de L’Aquila, a poucos
quilômetros de Roma. A esperança de conversão do papado e de renovação
da Igreja não durou seis meses: em 13 de dezembro do mesmo ano,
Celestino V renunciou.
Marcha da insensatez A
cidade francesa de Avignon, a 650 quilômetros de Paris, foi de 1309 a
1377 residência de sete papas – chamados papas franceses, por sua
subordinação aos reis da França.
A volta de Gregório XI ao
Vaticano, em 1377, por intervenção direta de Santa Catarina de Sena, não
encerrou a confusão. Ao contrário, criou uma crise que ameaçou a
unidade da Igreja, conhecida como grande cisma do Ocidente, com um papa
em Roma, outro em Avignon e o terceiro em Pisa. Eles se excomungaram
mutuamente.
O ambiente na corte vaticana só piorou dali para
frente. Dá para repetir a pergunta que o papa Bento XVI fez em 2008,
durante visita ao campo de concentração de Auschwitz, na Polônia: “Onde
estava Deus naqueles dias? Por que Ele se calou então? Como pôde tolerar
este excesso de destruição, este triunfo do mal?”.
Paradoxalmente,
é desse período obscuro da Igreja que hoje a civilização ocidental mais
se orgulha, quando milhões de turistas se extasiam diante dos tesouros
artísticos preservados nos museus vaticanos.
O nepotismo tomou
conta de Roma. Sisto IV (1471–1478), que construiu a Capela Sistina,
nomeou cardeais sobrinhos e primos. Júlio II, o papa de botas, pai de
três filhas, descansava das batalhas contemplando Michelangelo
Buonarotti pintando o teto da Capela Sistina. Na parede atrás do altar,
seu afresco do juízo final resume o esplendor da Renascença.
Quando
a América foi descoberta por Cristóvão Colombo, em 1492, e Pedro
Álvares Cabral desembarcou em Porto Seguro, em 1500, reinava em Roma um
papa espanhol, o nobre Rodrigo Borgia, símbolo dos tempos de trevas na
Santa Sé. Ricaço e sem escrúpulos, Rodrigo subornou membros do colégio
cardinalício com tesouros, bispados e posições eclesiásticas para chegar
ao trono de São Pedro.
Em 11 de agosto de 1492, Borgia iniciou
seu pontificado como Alexandre VI. Na corte papal, orgias sexuais,
assassinatos, corrupção e comércio de nomeações clericais tornaram-se
triviais. Foi numa festa em seu palácio que o cardeal Rodrigo Borgia,
bispo titular da diocese de Porto (onde funciona o Aeroporto
Internacional Leonardo Da Vinci, em Fiumicino), enamorou-se da linda
Giulia Farnese, a mulher mais bela do Renascimento segundo a crônica da
época.
A dissolução dos costumes desmoralizava o comando da
Igreja. O frade dominicano Girolamo Savonarola rebelou-se e acabou
queimado em praça pública. Tantos crimes, segundo a historiadora
norte-americana Barbara Tuchman no livro A marcha da insensatez,
resultaram em nova cisão no cristianismo, com o advento da reforma
protestante de Martinho Lutero, monge da ordem agostiniana.
Para
financiar a construção da atual Basílica de São Pedro, iniciada em
1506, o papa Leão X definiu um sistema de indulgências para os doadores
de dinheiro. Lutero esteve em Roma e não gostou do que viu. Em 1517, o
monge alemão pregou na porta da igreja de Wittenberg 95 teses que
desaguaram no rompimento com Roma. Em 1534, o rei inglês Henrique VIII,
que de tão fiel a Roma mandara queimar escritos de Lutero, também rompeu
com o papado, porque Clemente VII não aceitou anular seu casamento com a
espanhola Catarina de Aragão. Ele queria casar-se com Ana Bolena. Assim
nasceu a Igreja Anglicana.
Nesse mesmo período, funcionou o
tribunal do Santo Ofício para investigar e punir judeus e cristãos
heréticos. A Inquisição Espanhola, fundada em 1478, sob o comando de
Tomás de Torquemada, queimou na fogueira cerca de duas mil pessoas
processadas nos autos de fé. No reinado dos reis católicos Fernando e
Isabel, cerca de 170 mil judeus fugiram da Espanha.
Como
contraponto, a Espanha comparece nessa época com nomes de primeira
grandeza: Bartolomeu de las Casas, Teresa de Ávila e Inácio de Loyola. O
dominicano Bartolomeu de las Casas, intitulado “protetor dos índios”
pela coroa espanhola, lutou, em vão, contra as atrocidades cometidas
pelos cristãos na jovem América.
Teresa reformou a ordem
carmelita e 400 anos depois foi declarada doutora da Igreja por Paulo
VI. Em 1540, Inácio de Loyola fundou em Roma a Companhia de Jesus, a
ordem dos jesuítas, e iniciou o movimento da contrarreforma protestante.
Em 1541, inaugurou o Colégio Romano para a formação do clero, atual
Pontifícia Universidade Gregoriana.
A Igreja reage à expansão do
protestantismo, convocando em 1546 o Concílio de Trento – o mais longo
dos 19 concílios. Só encerrado em 1563, Trento disciplinou e modificou a
Igreja. Determinou a criação de seminários para a formação do clero e
tornou o celibato sacerdotal obrigatório; regulou a nomeação dos bispos e
definiu a hierarquia, a supremacia papal; unificou o missal e a
liturgia para a celebração da missa; criou o “Index librorum
prohibitorum” (lista de livros proibidos); legislou sobre os
sacramentos, indulgências e o catecismo.
Os jesuítas
desempenharam um papel importante na formação religiosa e cultural do
Brasil. Sem sua atuação em defesa dos nossos primeiros habitantes, o
massacre das tribos indígenas teria sido maior. Para cá vieram em 1547
na comitiva de Tomé de Souza os primeiros cinco jesuítas. Um deles, o
padre Manoel da Nóbrega.
A pedido dele, a Companhia de Jesus
enviou uma segunda leva de missionários ao Brasil e nela estava José de
Anchieta, com menos de 20 anos. Ele chegou em 13 de junho de 1553 na
expedição de Duarte Góis. No ano seguinte, Anchieta participou da
fundação do Colégio de São Paulo, origem da capital paulista.
Padre
Antônio Vieira notabilizou-se em sua obra literária (Sermões) pela
inteligência, a defesa dos índios e do reino de Portugal. Não teve o
mesmo ímpeto no combate à escravatura. No “Sermão décimo quarto”,
pregado em 1633 no engenho de São João Evangelista, na Bahia, Vieira diz
aos negros presentes que deviam “dar infinitas graças a Deus por vos
ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde
vossos pais e vós viveis como gentios; e vos ter trazido a esta, onde
instruídos na fé, vivais como cristãos, e vos salveis”.
Durante
os 300 anos de escravidão negra no Brasil, a Igreja Católica não fica
bem na foto, segundo o cientista político e historiador mineiro José
Murilo de Carvalho. Com raras exceções. Uma delas foi o lazarista
português e sétimo bispo de Mariana, dom Antônio Ferreira Viçoso
(1787-1875).
O professor Maurílio Camello e o bispo dom Gil
Moreira lembram sua luta abolicionista: ele proibiu os padres de Mariana
de serem proprietários de escravos. Dom Viçoso estava em sintonia com
Joaquim Nabuco, que em audiência pediu a Leão XIII a condenação da
escravatura. O papa se mostrou de acordo, mas, por artes do gabinete
conservador brasileiro, sua bula a favor dos escravos somente chegou ao
Brasil depois de a princesa Isabel assinar a Lei Áurea, em 13 de maio de
1888.
De volta às origens Leão XIII rompeu o
isolamento da Igreja num mundo que fervia de ideias novas. A
independência dos Estados Unidos da América, a Revolução Francesa e a
Revolução Industrial na Inglaterra desafiam uma Igreja habituada ao
sistema medieval. Em vez de servos, a Europa tinha agora trabalhadores
organizados em sindicatos. Surgem santos com preocupação social, como os
italianos dom Bosco e dom Orione.
Em 1891, Leão XIII lança a
encíclica Rerum novarum e inaugura a doutrina social da Igreja. Em 1917,
durante os conflitos da Primeira Guerra Mundial, outra revolução, desta
vez na Rússia, perturba a Igreja. Os comunistas de Moscou explodem
catedrais, perseguem padres e bispos.
Papa Pio XII enfrenta dias
difíceis durante o regime nazista de Adolf Hitler, que promoveu a
matança de judeus. Finda a Segunda Guerra Mundial, explode a Guerra
Fria, dividindo o mundo em esferas de influência dos Estados Unidos e da
União Soviética, em meio a conflitos coloniais e tribais na África.
Eleito
em 1958, João XXIII convoca o Concílio Vaticano II. Ele revolucionou a
Igreja e morreu como santo. Esse grande concílio, que em 2012 completou
50 anos de sua abertura, reconduziu a Igreja às suas origens. Abriu o
diálogo com os judeus, os cristãos do Oriente e com os protestantes.
Iniciou uma aproximação com os anglicanos. Reaproximou a Igreja dos mais
pobres e reconciliou-a com a ciência, da qual andava afastada desde que
o Santo Ofício condenou o astrônomo italiano Galileu Galilei (1564 –
1642), defensor do heliocentrismo.
Novos focos de tensão colocam a
Igreja em confronto com a modernidade, como a questão do aborto e a
pílula anticoncepcional, largamente usada pelas católicas, à revelia do
ensinamento oficial. O divórcio tornou-se banal mesmo em países de forte
tradição cristã, como Portugal, Espanha e o Brasil.
Os cardeais
elegem papa o polonês Karol Wojtyla. Ele toma o nome de João Paulo II. O
papa globe-trotter arrasta multidões em suas frequentes viagens pelos
continentes, mas tem sua autoridade desafiada pelos seguidores da
Teologia da Libertação.
A partir de ideias difundidas pelo
dominicano peruano Gustavo Gutierrez, muitos sacerdotes passaram a se
valer das técnicas e teorias do marxismo ateu para anunciar o evangelho,
como forma de combater as desigualdades e a injustiça social.
Segundo
o ex-jesuíta Malachi Martin, a Nicarágua foi o campo de teste da
Teologia da Libertação, sob a liderança dos irmãos Fernando e Ernesto
Cardenal – o primeiro, padre jesuíta; o outro, da congregação dos padres
Maryknoll. Dezenas de sacerdotes participaram ativamente da revolução
sandinista. Até pegaram em armas.
Palmatória dos teólogos de
esquerda, João Paulo II não se constrangeu em apoiar, abertamente, a
derrubada do regime comunista soviético, por meio de seu conterrâneo
sindicalista Lech Walesa. Tempos de debandada de sacerdotes. Mais de
120 mil padres deixaram a batina entre 1960 e 1980, período de
rearrumação da Igreja.
Quando a Igreja conseguiu estancar sua
sangria, uma crise muito mais grave veio a público: os escândalos de
pedofilia no clero. Escancarados na mídia, os crimes dos padres
pedófilos abalaram a Igreja Católica, com destaque para os Estados
Unidos, a Irlanda e até a cidade alagoana de Arapiraca.
Disputas
pelo poder na cúria romana, suspeitas de fraudes e de lavagem de
dinheiro no Banco do Vaticano, bispos e cardeais acusados de abuso
sexual fragilizaram Bento XVI. A exemplo de Celestino V, ele renunciou
ao papado. Com inspiração, os cardeais elegeram o argentino Jorge Mario
Bergoglio com o nome de Francisco. Carismático, ele já recuperou boa
parte da credibilidade da Igreja.
Fundada há 2 mil anos por Jesus
de Nazaré, a Igreja parece condenada a conviver mais com pecadores do
que com santos, seguindo sua herança de compaixão pelos que pecam. Essa
surpreendente organização (a mais antiga instituição ocidental ainda em
pé, segundo o escritor americano Peter Drücker) equilibra-se na
misteriosa dualidade de um corpo feito de barro animado pelo sopro
divino.
J. D. Vital é jornalista e autor de Como se faz um bispo segundo a alto e o baixo clero (Editora Civilização Brasileira).
Nenhum comentário:
Postar um comentário