Estado de Minas: 04/07/2013
Li no jornal: o
domador e dono de circo Orlando Orfei envelhece placidamente em sua casa
num subúrbio do Rio. Telefonei para a minha filha, que, tantas vezes,
criança, levei para vê-lo enfrentar leões. Ainda bem, ela disse,
sobreviveu às feras. As feras também sobreviveram a ele. Entendiam-se
bem no jogo de cena entre grades, ele e seus bichos, com tamboretes,
chicotes e aros de fogo. Sempre imaginei um sorriso irônico por parte
dos leões – não dos tigres, que desconhecem a ironia – diante da
flagrante peruca do domador, do seu traje quase de gladiador, mais
apropriado para o Coliseu do que para um picadeiro carioca. Mas nem por
isso lhe pouparam os ataques. No tórax seminu, Orfei exibia com orgulho
as fundas cicatrizes.
É esse o circo que me vem à memória quando penso em circo, embora já fosse adulta quando o frequentei. Não o de Soleil, grandioso como um filme de Cecil B. DeMille, mas esse mais modesto, mais circo, com cheiro e sons de circo.
Ando traduzindo o livro de uma bela escritora argentina, Maria Teresa Andruetto, Stefano, e lá pela página 50 embarquei com ela em um circo. Um circo felliniano, foi o que lhe disse quando recentemente nos encontramos em Buenos Aires, tem até mulher ruiva. E ela concordou. É o circo da sua infância.
Vivia então, me disse, numa pequeníssima cidade argentina no meio do nada e nada acontecia por lá de interessante. Uma vez por ano, porém, a excitação e a vida chegavam com o circo. O pai dela trabalhava em alguma coisa importante na cidade, creio que fosse a energia, e por conta disso, fornecendo luz para a tenda e os barracões, ganhava entradas para todas as funções. E lá ia Maria Teresa deslumbrar-se com os trapezistas, os palhaços, os malabares, espantar-se com o mágico, estremecer com o risco dos que se lançavam no alto, acima da rede. Ia à tarde para acompanhar os preparativos, voltava à noite para ver o espetáculo. Comia doces de circo, chocolates de circo, balas de circo e, saboreados na boca que não se cansava de sorrir, ganhavam gosto diferente de qualquer outro doce ou bala ou chocolate.
Eram dias, semanas de pura emoção. Mais intensa porque com prazo marcado. Depois, um dia, afrouxavam-se os cabos, os homens gritavam ordens enquanto as mulheres recolhiam as últimas roupas estendidas, tiravam-se os calços da lona, baixava-se o mastro central. Nenhuma bandeira mais flutuava no alto, nenhuma tuba ou trompete tocaria à noite. Quando os carroções se iam, ficavam apenas a marca de serragem do picadeiro, os sulcos profundos das rodas. E o nada retomava seu domínio até o ano seguinte.
Ficava também, sem que se visse, um circo estocado na reserva de prazeres da menina. Que dele lançaria mão mais de uma vez. Não é o primeiro livro dela que traduzo, no outro também havia um circo. Nenhuma mulher ruiva pendente no trapézio, mas uma bailarina de tutu evoluindo no dorso de um cavalo e um gosto especial de doce de leite na boca.
Orlando Orfei envelhece em sua casa de subúrbio. Sabe que é um dos últimos da sua estirpe porque, proibindo no circo os animais, aniquilou-se a figura do domador. As cicatrizes estão lá, talvez mais sensíveis quando chove, e é provável que tenha renunciado à peruca. Mas à noite, nos seus sonhos, ecoam trompetes e rugidos de leão.
É esse o circo que me vem à memória quando penso em circo, embora já fosse adulta quando o frequentei. Não o de Soleil, grandioso como um filme de Cecil B. DeMille, mas esse mais modesto, mais circo, com cheiro e sons de circo.
Ando traduzindo o livro de uma bela escritora argentina, Maria Teresa Andruetto, Stefano, e lá pela página 50 embarquei com ela em um circo. Um circo felliniano, foi o que lhe disse quando recentemente nos encontramos em Buenos Aires, tem até mulher ruiva. E ela concordou. É o circo da sua infância.
Vivia então, me disse, numa pequeníssima cidade argentina no meio do nada e nada acontecia por lá de interessante. Uma vez por ano, porém, a excitação e a vida chegavam com o circo. O pai dela trabalhava em alguma coisa importante na cidade, creio que fosse a energia, e por conta disso, fornecendo luz para a tenda e os barracões, ganhava entradas para todas as funções. E lá ia Maria Teresa deslumbrar-se com os trapezistas, os palhaços, os malabares, espantar-se com o mágico, estremecer com o risco dos que se lançavam no alto, acima da rede. Ia à tarde para acompanhar os preparativos, voltava à noite para ver o espetáculo. Comia doces de circo, chocolates de circo, balas de circo e, saboreados na boca que não se cansava de sorrir, ganhavam gosto diferente de qualquer outro doce ou bala ou chocolate.
Eram dias, semanas de pura emoção. Mais intensa porque com prazo marcado. Depois, um dia, afrouxavam-se os cabos, os homens gritavam ordens enquanto as mulheres recolhiam as últimas roupas estendidas, tiravam-se os calços da lona, baixava-se o mastro central. Nenhuma bandeira mais flutuava no alto, nenhuma tuba ou trompete tocaria à noite. Quando os carroções se iam, ficavam apenas a marca de serragem do picadeiro, os sulcos profundos das rodas. E o nada retomava seu domínio até o ano seguinte.
Ficava também, sem que se visse, um circo estocado na reserva de prazeres da menina. Que dele lançaria mão mais de uma vez. Não é o primeiro livro dela que traduzo, no outro também havia um circo. Nenhuma mulher ruiva pendente no trapézio, mas uma bailarina de tutu evoluindo no dorso de um cavalo e um gosto especial de doce de leite na boca.
Orlando Orfei envelhece em sua casa de subúrbio. Sabe que é um dos últimos da sua estirpe porque, proibindo no circo os animais, aniquilou-se a figura do domador. As cicatrizes estão lá, talvez mais sensíveis quando chove, e é provável que tenha renunciado à peruca. Mas à noite, nos seus sonhos, ecoam trompetes e rugidos de leão.
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