quinta-feira, 4 de julho de 2013

Milton Hatoum destaca ética de Graciliano Ramos em Flip política

folha de são paulo
FLIP 2013
Autor usou trechos de obras e trajetória do alagoano para tratar de problemas crônicos do país
Para curador da festa, autor de "Vidas Secas" lançaria "olhos meio desconfiados" sobre homenagem a ele
DOS ENVIADOS ESPECIAIS A PARATY (RJ)A "postura ética irrepreensível" de Graciliano Ramos (1892-1953), homenageado desta Festa Literária Internacional de Paraty, esteve no centro da conferência com que o romancista Milton Hatoum deu largada, na noite de ontem, à 11ª edição do evento.
Numa Flip que se propõe a realizar, segundo o curador Miguel Conde, "um esforço redobrado de pensamento sobre o momento político", trajetória e obra do autor de "Vidas Secas" (1938) permitiram a Hatoum aludir indiretamente a problemas que levaram a manifestos pelo país.
"Graciliano teve plena consciência das contradições do país e viu nelas um impasse. E uma das causas, para ele, é a ausência ou inconsistência da educação", disse, referindo-se ao uso da palavra pelo autor alagoano como uma "arma de explicação sutil".
Hatoum mesclou, numa leitura de uma hora e meia, trechos de obras do autor, como "São Bernardo"(1934), "Angústia" (1936) e "Memórias do Cárcere" (1953), com interpretações próprias e de críticos como Antonio Candido e Otto Maria Carpeaux.
A isso costurou detalhes da trajetória pessoal e profissional de Graciliano, que, nos anos 20 e 30, foi prefeito de Palmeira dos Índios (AL) e diretor da Instrução Pública de Alagoas, cargo equivalente ao de um atual secretário da Educação.
"A postura ética [de Graciliano], que subjaz à visão crítica, está a anos-luz do cinismo, da indiferença e da empáfia que ele criticou na figura de alguns de seus personagens", disse.
Hatoum lembrou ainda os célebres relatórios de prestação de contas que renderiam ao autor o convite para publicar o primeiro romance, "Caetés" (1933).
"Nesses textos já aparecem os assuntos de Vidas Secas', São Bernardo' e Infância', e a crítica ferina, o tom desabusado e as frases breves de seu estilo literário."
DESCONFIANÇA
Ao apresentar a conferência de abertura, o curador Miguel Conde disse que "Graciliano devolveria com olhos meio desconfiados o olhar de admiração que lançamos sobre ele".
"Ele era avesso a eventos solenes, como este não deixa de ser, e desconfiava da mistificação da figura do escritor, especialmente numa sociedade como a nossa, em que a cultura letrada muitas vezes serve de signo de demarcação das diferenças sociais", disse Conde.
Graciliano teria motivos de sobra para desconfiar de Paraty por estes dias.
É tema de exposição na Casa da Cultura, tem manuscritos em letras garrafais na entrada da Tenda dos Autores --o trecho de "Vidas Secas" em que a cadela Baleia, prestes a morrer, sonha em acordar "num mundo cheio de preás"-- e está entre os autores mais vendidos na tenda da Livraria da Travessa, que trouxe dezenas de títulos dele ou sobre ele.
"CAETÉS"
Durante a tarde, a editora Record lançou uma edição comemorativa dos 80 anos do livro "Caetés".
O título, escrito entre 1925 e 1928, e revisado pelo autor em 1930, narra a história de um escritor com planos de um grande livro que sucumbe à mesquinharia dos tipos de uma cidade do interior.
Segundo Ricardo Ramos Filho, neto de Graciliano, o avô, conhecido pelo pessimismo e pela autoironia, dizia que o romance não era tão bom assim, "mas tinha um ótimo prefácio" --uma referência ao texto do crítico Antonio Candido para a terceira edição da obra.
Autor nacional mais vendido da Record, com mais de 4 milhões de exemplares, Graciliano tem sido modernizado aos poucos.
Somente neste ano, 12 livros seus estarão disponíveis em formato digital.
Em 2014 será lançada edição especial de "Memórias do Cárcere". Também estão programados para o ano que vem uma coletânea de entrevistas e o lançamento de "Cangaços", volume de não ficção incluindo textos inéditos.
    FLIPETAS
    SOM PARA TODOS
    Após começar sua apresentação na abertura da Flip com "Realce" e "Novidade", Gilberto Gil presenciou uma pequena manifestação.
    Centenas de pessoas que assistiam ao show fora da tenda começaram a reclamar do som, que mal chegava às laterais. Sem entender a reclamação ruidosa, Gil anunciou que estava em assembleia. "Mas vem cá, tem uma pauta específica ou é um movimento difuso como as manifestações?", perguntou, divertindo parte da plateia. O imbróglio durou alguns minutos, até a apresentação ser reiniciada com "Domingo no Parque".
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    FALTAS JUSTIFICADAS
    O escritor norueguês Karl Ove Knausgård alegou motivos pessoais para cancelar sua participação na Flip às vésperas do início do evento. A Folha apurou que a mulher do autor está com depressão, o que teria impossibilitado a viagem.
    Entre organizadores da Flip, corre a maldade de que Michel Houellebecq, outra baixa importante desta edição e que já cancelara sua participação no ano passado, desistiu de vir ao Brasil por medo das recentes manifestações no país.
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    R$ 13 milhões
    é o total movimentado em Paraty durante os cinco dias de festa literária, segundo estimativa do secretário de turismo da cidade, Wladimir Santander
      ANDRÉ BARCINSKI
      De Maria Bonita a Jack Sparrow
      Evento mexe com Paraty, muda os hábitos dos comerciantes e até as roupas dos moradores moradores --até na vestimenta
      Não é segredo que a Flip mexe com Paraty. Tivemos prova disso há alguns dias, quando encontramos nosso amigo Wagão, que só anda de chinelo de dedo e camiseta regata do Fluminense, usando capacete, uniforme de "staff" do evento e falando apressadamente ao walkie-talkie: "Tô trabalhando na montagem das tendas", explicou Wagão.
      Quem mora na cidade logo percebe os sinais de aproximação do evento: o casal vestido de Maria Bonita e Lampião se coloca na ponte que liga o Pontal ao centro histórico e vende sua literatura de cordel; o jovem de cabelo "black power" posiciona a plaquinha que oferece "versos a um real". Não demora, e aparece também o sósia de Jack Sparrow, de "Piratas do Caribe", cobrando dois reais por uma foto.
      As lojas da cidade reciclam sua mercadoria: nas vitrines, somem as camisetas "Antes um bêbado conhecido que um alcoólatra anônimo", "Vem pra cachaça você também" e "Instrutor de sexo: primeira aula grátis", substituídas por estampas com poemas de Drummond. Faz parte.
      Outro personagem inescapável da Flip é o sujeito que chamamos de "morador ocasional": durante os cinco dias da festa, a figura abre as portas e janelões de um casarão colonial no centro histórico, liga um Miles Davis no último volume e passa as tardes sentado na calçada, fumando um cachimbo, lendo poesia e acariciando um cachorro do tamanho de um camelo.
      Muito "cool". Curiosamente, não é visto nos outros 360 dias do ano. Também faz parte.
      A verdade é que a Flip é vital para a cidade. Restaurantes, pousadas, hotéis, agências de turismo, barqueiros, cachaçarias, lojas, todos esperam o evento com ansiedade. São 800 empregos diretos, sendo metade para a população local.
      Os hotéis e pousadas ficam tão cheios que tem gente se hospedando em Ubatuba, a 70 quilômetros.
      Na tarde de quarta-feira, antes do início oficial da festa, Paraty já estava lotada.
      Na ponte, Maria Bonita oferecia seus cordéis e autores independentes tentavam vender seus livros. Muito bonito ver tanta gente tentando sobreviver da literatura.

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