terça-feira, 9 de julho de 2013

Primeiro romance de Beckett vai a leilão

folha de são paulo
Manuscritos de 'Murphy', inacessíveis por mais de 40 anos, serão leiloados amanhã pela Sotheby's de Londres
Cadernos escritos entre 1935 e 1936 pelo prêmio Nobel podem ser vendidos pelo equivalente a R$ 4 mi
GUSTAVO FIORATTIDE SÃO PAULOOs manuscritos de "Murphy", primeiro romance do escritor irlandês Samuel Beckett (1906-1989) vão a leilão amanhã. A expectativa é de que a venda feche em 1,2 milhão de libras (cerca de R$ 4 milhões), segundo a casa Sotheby's de Londres, responsável pela venda.
Os cadernos escritos entre 1935 e 1936 trazem não apenas o texto em si (que foi publicado em 1938) mas também anotações, sucessivas correções de frases até o resultado final e desenhos para vencer bloqueios criativos.
Beckett influenciou dramaturgos e encenadores ao redor do mundo e recebeu, em 1969, um prêmio Nobel.
Suas peças eram frequentemente associadas ao teatro do absurdo, classificação que tenta abarcar obras pós-guerra que, por exemplo, mesclam comicidade e a desolação e a incomunicabilidade do homem moderno.
O manuscrito de "Murphy" traz pistas sobre o processo criativo do autor irlandês. Há nele, por exemplo, a representação de códigos astrológicos que balizaram a narrativa.
Há também um autorretrato e um retrato de James Joyce (1882-1941), amigo, conterrâneo e uma de suas principais influências artísticas.
Os manuscritos de "Murphy" são divididos em seis cadernos, explica à Folha Peter Selley, especialista em manuscritos da Sotheby's. A cada vez que sentava para trabalhar, o autor irlandês marcava a data de sua investida.
"Beckett fazia desenhos em situações de bloqueio criativo como forma de dar vazão ao seu processo de criação", diz Selley.
A primeira frase do romance foi reescrita ao menos oito vezes. Beckett tentou "The sun shone, as only the sun can, on nothing new" e, depois de algumas mudanças, chegou à frase final: "The sun shone, having no alternative, on nothing new" ("O sol brilhava, sem alternativa, sobre o nada de novo").
Por um dos cadernos também é possível descobrir que o título "Sasha Murphy" também foi uma opção cogitada pelo autor. Para Selley, este é o mais importante manuscrito de um escritor irlandês que vem a leilão em décadas.
A Sotheby's prefere não divulgar nomes, mas Selley conta que os manuscritos estavam nas mãos de um colecionador que morreu recentemente. Eles foram comprados de um livreiro nos anos 1960 --este, por sua vez, possivelmente conheceu Beckett pessoalmente, uma vez que o autor tinha por hábito dar ou vender seus manuscritos aos amigos, após a publicação de seus trabalhos.
LEILÃO
A venda de "Murphy" amanhã em Londres será acompanhada com bastante expectativa, principalmente por pesquisadores de literatura especializados na obra do autor de "Esperando Godot".
"Tudo o que posso dizer é: espero, sinceramente, que [o trabalho] seja comprado por uma instituição pública que permita acesso a ele", diz Mark Nixon, considerado um dos principais pesquisadores da obra de Beckett.
Nixon dirige instituições britânicas como a Beckett Internacional Foundation e a Beckett Fellow, da Universidade de Reading, na Inglaterra. Ele participa ainda de um projeto de digitalização dos manuscritos de Beckett.
Segundo Nixon, a espera por "Murphy" foi longa. Isso porque os manuscritos pertenciam a uma coleção particular e ficaram inacessíveis ao público por mais de 40 anos, explica o pesquisador.
"Será uma perda terrível para a cultura e para a academia se eles desaparecerem novamente", diz.
Segundo Fabio Andrade, pesquisador que traduziu "Murphy" para o português (o livro será relançado neste mês pela Cosac Naify, leia mais abaixo), os manuscritos de Beckett são disputados no mercado como verdadeiras obras de arte, não só porque permitem saber particularidades sobre os processos de criação do autor mas também porque "são muito visuais".
Para Andrade, "será uma tristeza se esses manuscritos não puderem ir para o acervo internacional de Beckett".
Ele se refere aqui à rede formada por instituições públicas que hoje guardam outros manuscritos do irlandês.
"Esperando Godot", por exemplo, está atualmente sob os cuidados da Biblioteca Nacional da França.
    ANÁLISE
    Aspectos do primeiro romance antecipam o teatro do absurdo
    MARCIO AQUILESDE SÃO PAULOSentado nu, amarrado a uma cadeira de balanço por vontade própria, esperando pelo nada. Assim Murphy inicia o romance intitulado com seu nome, o primeiro de Samuel Beckett.
    O idealismo do protagonista, que prefere "viver no espírito" e recusa-se a trabalhar, tem origem em sua atitude solipsista, que abdica da interação com o ambiente e volta-se primordialmente a sua existência.
    A negatividade de Murphy não vem de um pensamento pessimista; antes disso, ela é conceito, método pragmático que coordena todas as suas (não) ações.
    Ao redor dessa figura densa todos os personagens secundários gravitam, como planetas em torno de estrelas, fato metaforizado no romance por meio da obsessão de Murphy por astrologia.
    A complexidade de seus hábitos verticaliza o protagonista, perante o qual os outros personagens tornam-se horizontais, planos, mas não por isso rasos, uma vez que a excentricidade de cada tipo garante o interesse ficcional e o encanto do leitor.
    Neary tem a habilidade de fazer seu coração parar a seu bel-prazer. A prostituta Celia, que tem sua biometria descrita no segundo capítulo, mostra uma devoção quase religiosa ao seu amado Murphy.
    O faz-tudo Cooper é caolho, tem três testículos, nunca se senta e nem tira o chapéu. Wylie tem reflexos rápidos como os de uma zebra.
    Dotada de um vocabulário exuberante --que inclui termos da matemática, da medicina e da teologia-- e figuras de linguagem abundantes --hipérboles, trocadilhos--, a narrativa é recheada de procedimentos estéticos e temáticos que iriam constituir depois de alguns anos o seu teatro do absurdo.
    O comportamento repetitivo e a insatisfação permanente de Vladimir e Estragon em "Esperando Godot" já estão prefigurados ali, assim como o debate à exaustão a respeito da ausência de alguém.
    A inércia de uma Winnie enterrada até o pescoço em "Dias Felizes" ou a paralisia generalizada em "Fim de Partida" são análogas à imobilidade de Murphy preso ao seu assento solitário.
    As múltiplas referências cruzadas --tanto linguísticas quanto históricas-- e sofisticados jogos de palavras com nomes e sentenças somam-se à estranheza dos personagens na composição de "Murphy", representando o embrião do universo caótico que mais adiante seria designado como beckettiano.

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