Aquarela sangrenta do Brasil
Considere um país que está entre os dez mais violentos do mundo: um dos países onde mais se morre por causa de tiro.
Nesse mesmo país, a população adulta mal passou da escola primária, em média. Nas estatísticas mundiais de anos de instrução, esse país está para lá de centésimo lugar numa lista de 185 nações.
Esse país fantástico também é um dos dez mais desiguais em termos econômicos (de renda individual, mas não apenas).
Esse país é o Brasil.
Tais estatísticas não são lá novidade, mas vêm à lembrança porque o Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela), uma ONG do Rio, divulgou neste mês compilação muito útil e bem feita de dados sobre mortes por armas de fogo no Brasil dos últimos 30 anos.
Os números deveriam ser motivo de atenção em particular neste momento de suposta autoanálise nacional, em que o "gigante acordou", embora ainda tenha sono ao ler estatísticas e estudos sobre si mesmo. O "gigante", rudimentar, desinformado e despolitizado, acha que os problemas nacionais se deveriam todos a uma casta corrupta de políticos (que elegemos distraidamente).
Numa lista de cem países, o Brasil está em oitavo lugar em homicídios e no nono no quesito "mortes por armas de fogo" (isto é, estamos no topo do ranking mesmo levando em conta o tamanho da população).
Desde quando há estatísticas mais confiáveis (20, 30 anos), latino-americanos quase dominam a lista dos mais violentos, com centro-americanos à frente, seguidos de Venezuela, Colômbia, México e Brasil.
A taxa de mortes por arma de fogo no país é igual à do México. Oito vezes a chilena. Mais que o triplo da argentina. O dobro da americana, o país rico mais violento do mundo.
Alagoas, Pará, Bahia, Paraíba e Espírito Santo são os Estados brasileiros mais violentos. Rondônia, Piauí, Santa Catarina e São Paulo, os mais pacíficos.
Aliás, São Paulo é uma das três capitais onde menos se morre por tiro. O Estado tem uma taxa de morte à bala similar à dos EUA e foi um dos mais bem-sucedidos na redução da mortandade na última década.
A taxa de mortes por tiro nos municípios brasileiros nada tem a ver com índices de desenvolvimento humano, renda, saúde, educação e tamanho da população, indica o cruzamento dos dados (feito por esta coluna). Políticas de segurança, o fato de a cidade ser nova e/ou estar perto de zonas de risco (fronteira, tráfico) etc., afetam as estatísticas.
O Cebela lembra pesquisas do Conselho Nacional do Ministério Público, entre outras, a respeito do motivo da mortandade. Entre os crimes resolvidos (proporção baixíssima, de 5% a 8% do total), grande parte era de assassinatos por motivos fúteis e/ou impulso: "brigas, ciúmes, conflitos entre vizinhos, desavenças, discussões, violências domésticas, desentendimentos no trânsito".
Ou seja, por ninharias, o brasileiro rasga a fantasia fina de civilização e atira: é tosco e tem uma arma à mão para cometer barbaridades (quando não tem arma de fogo, tem um automóvel: somos um dos povos que mais se mata também no trânsito).
Desigualdade de renda, social, de poder, violências, falta de educação: há algo de anormalmente errado com o Brasil. O "gigante" precisa acordar para isso.
Vinicius Torres Freire está na Folha desde 1991. Foi Secretário de Redação, editor de 'Dinheiro', 'Opinião', 'Ciência', 'Educação' e correspondente em Paris. Em sua coluna, aborda temas políticos e econômicos. Escreve às terças, quintas e domingos, no caderno 'Mercado'.
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