Ela é Bárbara
Autoridade em Shakespeare, a crítica de
teatro mais temida do Brasil chega aos 90 anos. "Terror" de
atores e diretores, ela conquistou respeito por sua dedicação ao ofício
Carolina Braga
Estado de Minas: 05/08/2013
Uma frase escrita por ela tem poder de
fogo – para o bem ou para o mal. Quem foi foco de tais palavras que o
diga. “Lá do palco, a gente vê de longe aquela cabeleira branca. E
treme”, confessa a atriz Drica Moraes. Afinal, quem não tem medo de
Bárbara Heliodora? Prestes a completar 90 anos, ela é a crítica de
teatro mais temida do Brasil.
Curiosamente, há controvérsias
sobre a famosa dona Bárbara. Quando o assunto é William Shakespeare,
dificilmente se encontrará alguém no Brasil com tamanha autoridade para
falar sobre o Bardo. Nesta hora, a mestra nada tem de durona. Embora o
rigor seja quase marca registrada, ouvi-la discorrer sobre as dinastias
inglesas ou sobre a genialidade do dramaturgo ofusca totalmente a
persona mal-humorada.
Defensores de um novo olhar crítico para o
teatro contemporâneo acusam Bárbara Heliodora de manter postura
personalista, sem aprofundar a reflexão sobre novidades que companhias,
diretores e autores encenam atualmente. Mesmo assim, concordam: o
interesse dela por seu objeto de análise é inquestionável. É daí que vem
o respeito.
Quando pensa na figura de Bárbara Heliodora, a
mineira Inês Peixoto imediatamente abre um sorriso. “Tenho um caso tão
engraçado com ela...”, deixa escapar a atriz do Grupo Galpão. Rir também
é a reação do ator mineiro Alexandre Cioletti ao se lembrar da
experiência de ter sido criticado por ela: “Nunca na minha vida vou
esquecer aquela frase. Hoje, já superei. Mas foi duro”.
Ao lado
de Débora Falabella, Alexandre Cioletti interpretava Paulo, personagem
de A serpente, de Nelson Rodrigues, sob a direção de Yara de Novaes. O
ator ainda se lembra do burburinho nos bastidores quando veio a notícia
de que Bárbara Heliodora estava na plateia. “Foi aquele frisson. A gente
finge que não está nem aí, mas dá medo. Não tem jeito de não sentir
assim”, conta. Dias depois, o baque. “Ela acabou comigo. E eu pensava:
não é possível. Bárbara Heliodora tem que ser respeitada por sua
história, mas ouso dizer: ela não estava certa.”
Uma das
criadoras da peça Hysteria, a paulista Sara Antunes, ex-integrante do
Grupo XIX de Teatro, também experimentou episódio de superação
envolvendo Bárbara. “Ela sempre elogiou as peças que fiz. Então, quando
foi ver Sonhos para vestir, eu não tinha pavor de suas críticas ou algo
assim. Era alguém que, a princípio, gostava do meu trabalho. E abusei.
Tive a ousadia de querer interagir com ela”, revela a atriz.
Em
determinado momento do espetáculo, dirigido por Vera Holtz, Sara
perguntava aos espectadores que lugar escolheriam para ter um dia
radiante. “Escolhi a dona Bárbara, e ela respondeu: ‘Inglaterra’. Outras
pessoas criaram mil histórias com o nosso autor inglês, e a
improvisação virou outra coisa. Ela saiu com a cara muito fechada,
escreveu crítica terrível”, relembra a atriz.
Para alento de
Sara, depois de receber comentários nada entusiasmados de Bárbara,
Fernanda Montenegro foi conferir Sonho para vestir. “Quando acabou a
sessão, ela ficou uma hora comigo falando sobre os árduos caminhos do
ator, dizendo que devemos sempre seguir em frente. A crítica negativa
veio com esse presente inesquecível”, revela a ex-integrante do Grupo
XIX de Teatro.
Foi notório o quanto a versão mineira de Romeu e
Julieta, do Grupo Galpão, caiu nas graças de Bárbara Heliodora,
autoridade em Shakespeare. Talvez por isso, a relação de profundo
respeito e admiração foi cultivada por ambas as partes ao longo dos
anos.
Quando a montagem estreou em Londres, a crítica carioca
estava na cidade. Por coincidência, acompanhou o Galpão na excursão à
terra natal de Shakespeare, Strattford-Upon-Avon. “Alugamos um ônibus.
Foi lindo, porque ela sentou na cadeira da frente e deu uma aula para a
gente sobre a relação de Shakespeare com as dinastias, falou sobre a
totalidade da obra”, conta Inês Peixoto.
Além dessa lembrança, a
atriz guarda a foto de Bárbara Heliodora com a trupe mineira na frente
da casa onde Shakespeare teria nascido.
Quando fazem turnê no
Rio de Janeiro, os atores do Galpão, sempre que possível, são
carinhosamente convidados para jantar na casa de Bárbara Heliodora. “Ela
nos conta casos maravilhosos sobre o teatro brasileiro. É uma
enciclopédia ambulante”, comenta Inês.
O tal caso engraçado entre
as duas ocorreu num desses encontros, na época da estreia carioca de O
inspetor geral, de Gogol. O bebê de Inez simplesmente golfou na blusa de
seda da anfitriã. “Claro que ela achou graça, mas foi uma situação
inusitada. Estamos sempre acostumados a ver a dona Bárbara pelo lado da
crítica, muito temida. Mas vi-me naquela situação de mulher para
mulher”, diz.
“A presença dela na plateia toca o ator, porque é
uma pessoa que conhece teatro profundamente. Dona Bárbara pode ser muito
dura com alguns espetáculos, mas, no geral, as críticas são
consistentes. Ao mesmo tempo em que é temida, as pessoas desejam ouvir
uma crítica dela”, conclui Inês.
O Estado de Minas procurou
Bárbara Heliodora para falar de sua trajetória como crítica de teatro e
especialista em Shakespeare. De acordo com a família, ela se recupera de
problemas de saúde e não pode dar entrevistas. Depois de passar 20 dias
internada num hospital carioca, Bárbara voltou para casa na semana
passada.
Na rede
A fama de durona de
Bárbara Heliodora mereceu até perfil falso na internet. Aliás, vários. O
responsável por isso é o dramaturgo carioca Felipe Barenco, que criou
as contas dona Heliodora e dona Shakespeare. O primeiro perfil foi
desativado, enquanto o outro, apenas no Twitter, superou 20 mil
seguidores.
saiba mais
55 anos de ofício
Na
certidão, ela se chama Heliodora Carneiro de Mendonça. Nasceu no Rio de
Janeiro em 29 de agosto de 1923, filha do mineiro Marcos Carneiro de
Mendonça – historiador e goleiro da Seleção Brasileira (de quem a filha
herdou o amor pelo Fluminense) – e da poetisa Anna Amélia, fundadora da
Casa do Estudante do Brasil.
A carreira da crítica de teatro
Bárbara Heliodora começou em 1958, no jornal carioca Tribuna da
Imprensa. Até 1964, assinou coluna no Jornal do Brasil. De 1964 a 1967,
coordenou o Serviço Nacional de Teatro. Dedicou-se ao ensino e ao estudo
de Shakespeare, tornando-se respeitada especialista na obra do Bardo.
Professora da Uni-Rio, deu aula em cursos de pós-graduação da
Universidade de São Paulo (USP) e, em 1975, defendeu a tese de doutorado
A expressão dramática do homem político em Shakespeare.
Bárbara
Heliodora traduziu para o português clássicos da dramaturgia mundial,
especialmente peças de Shakespeare. Desde 1986, escreve sobre teatro no
jornal O Globo.
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