Cinzas e diamante
Francisco ocupa vácuo de lideranças, principiando com aquilo que os políticos evitam: a autocrítica
Parte do encanto que emana do papa Francisco se deve ao contraste com o deserto de liderança que o mundo atravessa. Prova disso se encontra na própria Roma, da qual é o bispo, título que prefere por razões ecumênicas. Lá, a Justiça acaba, sem apelo, de condenar Berlusconi, quatro vezes primeiro-ministro.
Como foi possível que se degradasse tanto o posto antes ocupado por De Gasperi e Aldo Moro? Um dos amigos diletos do réu italiano de incontáveis processos é Putin, que sobrou como destroço do naufrágio de 70 anos da mais radical das revoluções, a que pretendia criar o "homem novo".
Itália e Rússia são casos extremos, mas não únicos. O que é Angela Merkel, comparada a Adenauer ou Willy Brandt? Ou Hollande, cotejado a De Gaulle e a Mitterrand; Cameron, a Churchill; Mariano Rajoy ao pacto de Moncloa e a Felipe González? Países que, tempos atrás, tiveram governantes influentes como o Canadá de Trudeau ou a Suécia de Olof Palme mergulharam no completo anonimato.
A China se especializa numa série infindável de clones com o mesmo terno escuro e igual gravata vermelha. O 3º Mundo, que estreava com Nehru, Nasser, Tito, Sukarno, descambou para a irrelevância. Ho Chi Minh virou nome de cidade. A ONU, o FMI, o Banco Mundial, antes dirigidos por personalidades fortes, foram entregues a gente que ninguém conhece. Do Brasil, cuja vida pública se ilustrava com Tancredo, San Thiago Dantas, Ulysses, para só mencionar alguns mortos, nem preciso falar.
As causas podem ser muitas e complexas, mas é inegável que se trata de mediocrização sem precedentes talvez. Nos anos 1930, surgiram lideranças políticas poderosas embora altamente malignas: Hitler, Stalin, Mussolini. Hoje, nem isso.
Deixei para o fim Obama, o caso mais espetacular de frustração de expectativas desde John Kennedy. Pode ser que no futuro os historiadores julguem que ele tenha sido injustiçado; que a diferença de circunstâncias não teria permitido a reprodução do New Deal e o aparecimento de um segundo Franklin Roosevelt. O fato, porém, é que para muitos de seus eleitores ou entusiastas, dentro e fora dos EUA, o presidente é uma decepção.
A frustração vem de muita coisa: a timidez da reforma financeira, o fracasso em reverter a escandalosa concentração de renda, a escolha para postos principais dos homens de Wall Street responsáveis pela crise, o programa de assassinatos a distância e agora a espionagem de tudo e de todos no melhor estilo Big Brother.
Sobram a Obama os instrumentos do poder duro: drones para matar sem risco ou meios eletrônicos para espionar. Apesar do absurdo Nobel da Paz que lhe deram adiantado, faltam-lhe os elementos intangíveis da liderança moral e de ideias.
É esse vácuo que Francisco passa a ocupar, principiando com aquilo que os políticos evitam: a autocrítica rigorosa. A denúncia da "globalização da indiferença", o convite para ir em socorro das periferias, geográficas e existenciais, o exemplo dos gestos concretos, o conceito de poder como serviço são mais que uma promessa. Um diamante começa a brilhar em meio às cinzas.
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