domingo, 4 de agosto de 2013

BRASIL PROFUNDO » Registros autênticos

Longe de estúdios e próximos de sua realidade, mestres e grupos de várias manifestações da cultura popular brasileira têm as suas músicas gravadas em disco pela primeira vez 


Mariana Peixoto

Estado de Minas: 04/08/2013 


Betão Aguiar nasceu em São Paulo, há 35 anos. Com menos de 1 ano, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro. De lá, ainda na primeira infância, foi para a Bahia. Não havia como fugir da música, já que é filho de Paulinho Boca de Cantor, um dos fundadores dos Novos Baianos. Mais velho, o contrabaixista começou a tocar com Carlinhos Brown e Moraes Moreira. Nas viagens, conheceu muito do interior do país. O despertar de Betão para a cultura popular veio de toda essa vivência e da experiência singular de dois Mários que vieram muito antes dele.

Seu bisavô Mário Aguiar, um juiz de São Luiz do Paraitinga, interior de São Paulo, que tinha como hobby registrar na escrita manifestações da cultura popular da região. Era contemporâneo de Mário de Andrade, com quem chegou a trocar cartas. Oitenta anos depois da incursão que o modernista fez pelo Norte e Nordeste – série de viagens que resultaram no livro O turista aprendiz, escrito nos anos 1940 e lançado em 1976 –, Betão criou o projeto Mestres navegantes, que registra manifestações da cultura popular.

O resultado da primeira etapa saiu em 2010, com mestres e grupos de São Luiz do Paraitinga, no Vale do Paraíba. A segunda etapa, que abrange a região do Cariri cearense, está sendo lançada agora, ambas pelo programa Natura Musical. São 10 CDs com registros em áudio de 53 grupos – e também solos e duplas – de reisado, coco, repente, embolada, cordel etc. (veja box). Essa é uma parte do material, já finalizada.

Betão trabalha agora para o lançamento de 10 minidocumentários, cinco programas de rádio, mais fotos e textos que serão disponibilizados, nos próximos meses, no portal Natura Musical (www.naturamusical.com.br). Os CDs não serão vendidos (as faixas poderão ser baixadas gratuitamente). Eles foram distribuídos para os grupos participantes (cada um recebe cota de 300 discos), escolas públicas, ONGs e centros de pesquisa de cultura popular.

“Já houve outros projetos que fizeram registros. Mas, de maneira geral, as pessoas gravavam os artistas e depois iam embora, não devolviam o resultado para eles. Pensei em fazer uma coisa que fosse legal também para os mestres. Noventa e cinco por cento deles nunca tinham registrado suas obras. Muitos nunca tinham se ouvido cantar”, comenta Betão, que está envolvido com cultura popular desde 2007.

Os registros foram feitos in loco, entre 2010 e 2012 – os primeiros, ainda sem patrocínio, foram bancados pelo próprio Betão. “Mário de Andrade levou um gravador de rolo para fazer os registros. Hoje em dia, temos tecnologia de alto padrão”, continua ele, que buscou interferir o mínimo possível no ambiente original. “Há projetos que levam os grupos para um estúdio. Mas eles não são músicos do mercado profissional. São muito intuitivos, fazem música por outras razões. Se você os coloca numa sala fechada, a manifestação pode ‘esfriar’.”

Para participar do projeto, Betão selecionou grupos que estão em atividade. “Fazia reunião com mais de 100 pessoas, para saber se realmente queriam participam. Houve ainda um processo educativo, explicamos que eles são autores de uma obra, que existe lei de direito autoral, que a música deles realmente tem valor. Muitos não sabiam nem ler, e como a cultura popular sempre teve um paternalismo forte, na figura de um secretário de cultura ou um produtor cultural, os mestres acabaram se acomodando um pouco”, acrescenta ele, que não pretende parar por aí.


Tem procurado parcerias para desenvolver uma série de TV. Pensa ainda numa exposição. “Ao mesmo tempo, quero que esse material vá se transformando. Curumin, Felipe Cordeiro e Gui Amabis estão fazendo remixes. Meu sonho é ter um banco de dados para que o jovem de periferia, em vez de usar um som de Miami, um drum’n’bass, use um surdo de congado ou um pandeiro para criar sua própria música.” Afora isso, Betão desenha ainda uma edição do Mestres navegantes na Ilha de Marajó. “É um projeto de vida”, conclui.

Diversidade
Betão Aguiar tem aprendido na prática como fazer tanta coisa com o tempo que tem. O projeto Mestres navegantes é realizado concomitantemente com o trabalho de músico e produtor. Ele atualmente integra as bandas de Arnaldo Antunes, Baby do Brasil e Felipe Cordeiro. Produz ainda o novo disco de Arnaldo, que já lançou duas faixas on-line (a terceira será disponibilizada amanhã no site www.arnaldoantunes.com.br). Com o estúdio Navegantes, que mantém em São Paulo, Betão já gravou discos das cantoras Luê,
Céu e Anelis Assumpção, entre outras. Produziu ainda as trilhas dos filmes Ó Paí, Ó, de Monique Gardenberg, e As melhores coisas do mundo, de Laís Bodanzky.

Raízes
» Reisado – Presente em dois CDs, que trazem o registro de 13 manifestações. De origem portuguesa, mistura música, teatro e dança para festejar a renovação. Antes apresentado entre o fim de dezembro e o início de janeiro (até o
Dia de Reis), hoje é festejado em qualquer época. “No Cariri, era encenado para comemorar o aniversário de alguém.
O grupo chegava de surpresa às 5h da manhã à casa da pessoa e ficava
o dia inteiro na comemoração”, conta Betão Aguiar.

» Cabaçal – Também rendeu dois CDs, que trazem o registro de nove manifestações. “É muito antigo no Cariri. O nome vem dos instrumentos, que eram feitos de cabaças. A instrumentação é como a de uma banda de pife, mas pode variar”, conta Aguiar. De maneira geral, as formações são de dois pifes, uma zabumba, uma caixa e pratos
(somente este último não é produzido pelos integrantes).

» Coco – Cinco grupos de coco renderam um CD no projeto. A maioria das formações é feminina. “Usam a música como canto de trabalho, amassar o barro para construção das casas”, conta Aguiar.

» Maneiro Pau – Também com um CD, que traz quatro grupos. “A coreografia é em roda, com bastões (um integrante “bate” no bastão de outro, daí o nome Maneiro Pau). Um mestre puxa o canto, improvisando, e o coro responde.”

» Guerreiro – O CD registra três manifestações, que são como uma versão feminina do reisado. Um dos três
registros é o do Guerreiro da Mestra Margarida. “Ela está com quase 90 anos e ficou tão feliz em receber os discos”, relembra Aguiar.

» Repente, embolada e cordel – Manifestações mais conhecidas da região, ganharam um único CD, que abrange 10 artistas (solo ou dupla).

» Penitentes e incelenças – Manifestações de forte cunho religioso. “Os penitentes se autoflagelam. Fizemos o registro mais voltado para o lado musical”, conta Betão Aguiar. Já as incelenças (foi registrada somente a do Sítio Cabeceiras) são grupos de mulheres que cantam quando morre uma criança. “É bem triste, mas superbonito. Elas se reúnem para consolar a família e acompanham o cortejo até a sepultura”, afirma Aguiar.

» Terreiro Cariri – O CD reúne manifestações diversas, que não podiam entrar nos discos anteriores. Há o grupo Bacamarteiros da Paz – “os bacamartes vêm da Guerra do Paraguai, quando os soldados voltavam felizes para as esposas e comemoravam com comilança e dando tiros para o alto; Lampião brincava muito disso” –; Mestre Custódio do Berimbau – “que toca o berimbau elétrico, um pedaço de madeira no corpo de uma guitarra” –, dois grupos de lapinha – “crianças que fazem encenações de presépio” –, Maria do Horto – “ela apresenta poemas que musica, achei que tinha que registrar” – e Banda de Pife Carcará – “as bandas cabaças têm dois pifes; essa tem um só”.

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