Pavão sem ministério
Canção de 'Saramandaia' marcou a chegada de cearenses à cena nacional da música, mas foi desprezada no remake
Telespectadores mais atentos (e antigos) sentiram falta de "Pavão Mysteriozo", do músico cearense Ednardo, trilha da abertura da novela nos anos 1970 e que, na versão atual, virou só um tema do personagem João Gibão (Sergio Guizé).
Lançada em 1974, no disco de mesmo nome, a canção da abertura foi o estouro da boiada na carreira de José Ednardo Soares Costa Sousa.
Ele estreara no ano anterior com os também cearenses Rodger e Teti no álbum "Meu Corpo, Minha Embalagem, Tudo Gasto na Viagem -- O Pessoal do Ceará".
"Eu soube que a canção tinha sido incluída na trilha da novela vendo TV. Foi um susto, mas foi maravilhoso", contou Ednardo, 68, à Folha.
Ali também começou algo maior: a consolidação nacional de uma cena musical cearense que desde o final dos anos 1960 havia migrado para o eixo Rio-São Paulo.
Além de Ednardo, Rodger e Teti, Fagner, Belchior e Amelinha vieram de mala e cuia. Na trincheira dos compositores estavam Petrúcio Maia, Ricardo Bezerra, Augusto Pontes e Fausto Nilo.
"Elis [Regina] já havia gravado [em 1972] Mucuripe', e Hora do Almoço', do Belchior, começava a ganhar destaque, mas Pavão' foi a primeira dessa leva a ser massificada", disse Fagner.
Em 1973, ele lançara "Manera Fru-Fru, Manera", que tinha "Mucuripe", parceria com Belchior. Esse último saiu no ano seguinte com o disco "Mote e Glosa", onde estava "À Palo Seco". Em 1975, Amelinha já excursionava como cantora com Toquinho e Vinicius de Moraes.
NOTÍCIAS DO SUL
"O ajuntamento dessa turma toda começou na faculdade de arquitetura do Ceará e depois migrou para o Bar do Anísio, que ficava na orla de Fortaleza, na época, uma vila de pescadores. Era um tempo de completa efervescência cultural", conta Nilo.Parte do dinheiro do diretório estudantil, dirigido pelo compositor e arquiteto, era destinada a coisas alheias à arquitetura e ao urbanismo.
"Comprávamos discos, revistas e jornais, com acesso livre para todos. Sabíamos dos shows no teatro Opinião e dos poemas de Ferreira Gullar pelo "Jornal do Brasil". Aquilo tudo nos incendiava."
Entre as compras estavam discos de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, cantorias de viola, bolachões de Bob Dylan e dos Beatles, romances franceses e livros de filosofia.
CENSURA
O ambiente estudantil afinou também a ideologia do grupo, mais à esquerda.Pouco comentado até por seu criador, "Pavão Mysteriozo" tinha um toque político nas entrelinhas ""ou nem tanto, basta ouvir hoje versos como "me poupa do vexame/ de morrer tão moço/ muita coisa ainda/ quero olhar".
"Era uma canção de protesto, política, sobre a construção de um mecanismo que nos faria voar, fugir do que vivíamos. A censura não percebeu", disse Ednardo.
A base da letra era o romance de cordel "O Romance do Pavão Misterioso", conhecido no Nordeste a partir dos anos 1920 (leia ao lado).
"Eu assistia à novela e ouvia a música na TV que havia na praça de Catolé do Rocha [PB]", lembrou o cantor paraibano Chico César.
"Nos víamos representados em algo de grande circulação, que eram a novela e a música. Aquela realidade da qual tratava a canção, de sol abrasador, de um mundo fantástico entremeado à realidade, todo nordestino já conhecia desde a infância."
Passados 40 anos, o legado do pavão vingou.
Os nomes mais vistosos daquela cena como Fagner, Ednardo, Belchior, Fausto Nilo e Amelinha ainda estão na estrada.
Cordel que inspirou música divide famílias de violeiros
DO EDITOR-ASSISTENTE DA "ILUSTRADA"
O folheto que conta a história de um "pavão misterioso/ que levantou voo na Grécia/ com um rapaz corajoso/ raptando uma condessa/ filha de um conde orgulhoso" é um clássico da literatura popular nordestina. Foi criado no começo do século 20.Em 2006, o livro "Memória das Vozes: Cantoria, Romanceiro e Cordel" (Fundação Cultural da Bahia), da pesquisadora francesa Idalette Muzart, cravou que seu autor é o paraibano José Camelo de Melo e não José Melchíades Ferreira --as famílias disputam a autoria até hoje.
Melchíades teria se apropriado de "O Romance do Pavão Misterioso" durante uma temporada de Camelo longe da Paraíba.
Para a escritora potiguar Clotilde Tavares, autora de "A Botija" (Editora 34), que reconta a obra em prosa, o folhetim é de ficção científica.
"Imagine: algo criado nos anos 1920, no interior do Nordeste, que falava de telegrama, fotografia, de uma construção que tinha alavanca, chave e botão/ Voava igualmente ao vento / Para qualquer direção'. Isso é futurismo, ora."
Segundo Clotilde, o folheto também é um auge da criatividade dos violeiros e cantadores nordestinos.
OPINIÃO
Canção ainda comove e faz falta na nova versão da novela
LUIZ FERNANDO VIANNAESPECIAL PARA A FOLHAPara quem tem em torno de 40 anos, "Saramandaia" sem "Pavão Mysteriozo" é como Picasso sem tinta.Da Dona Redonda podemos lembrar. Da canção de abertura da novela não conseguimos esquecer. Até hoje.
Ednardo lançou a música com uma estranha grafia que alegraria Glauber Rocha e Zé Celso, em 1974. Dois anos antes da novela que a transformou em fenômeno nacional.
O sucesso foi tanto que é até compreensível, embora injusto, ver Ednardo como autor de um só sucesso.
Quem viveu os anos 1970 pôde ouvi-lo cantando nas rádios e TVs "Enquanto Engomo a Calça", "Terral", "Artigo 26", "Vaila". Seus shows lotavam. Meninos, eu vi.
Mas algo naquelas canções perdeu força. A leveza de suas "histórias bem curtinhas fáceis de contar" parecem antigas vistas daqui, de um mundo que embruteceu.
As imagens de "Pavão", quase lisérgicas, eram uma mensagem contra a bruta década militar. Mas nem precisava. A canção continua comovente e faz uma tremenda falta na nova "Saramandaia".
TELEVISÃO
'Saramandaia' discute assuntos sociais
Trama das 23h já abordou aborto e prostituição; veja outros temas controversos explorados em novelas da Globo
Autor Ricardo Linhares afirma ser 'hipocrisia negar a realidade' e que 'dramaturgia não pode ser chapa branca'
Para além dos tipos curiosos criados por Dias Gomes para denunciar desmandos da ditadura militar, como o político corrupto que espirra formiga pelo nariz ou a jovem que queima os lençóis a cada lampejo de prática sexual, a adaptação de Ricardo Linhares tem promovido um debate aberto de temas sociais.
O folhetim já tratou do direto à prática do aborto, por meio da adolescente Stela (Laura Neiva), que bradou que "a mulher é dona do próprio corpo" após descobrir que a tia sofrera por causa de um procedimento mal feito.
A defesa da legalização da prostituição também encontrou eco em "Saramandaia", em um relato de Risoleta (Débora Bloch). "Se há consenso entre as pessoas, se não existe violência nem exploração, é uma profissão tão digna quanto todas as outras", afirmou a personagem, uma ex-profissional do sexo.
"Sou um escritor progressista. Acredito que a TV pode estimular a discussão de ideias, ao mesmo tempo em que entretém", diz Linhares.
Para ele, esse é o seu trabalho "mais contestador". "Tenho 30 anos de carreira. Quando comecei, era proibido adultério na novela das 18h. O mundo mudou e a televisão acompanhou essas mudanças, algumas vezes abrindo caminho na modernização dos costumes, outras vezes pegando carona em movimentos da vida real."
"VEM PRA RUA, VEM"
Logo na estreia de "Saramandaia", lembra o autor, houve a coincidência entre as manifestações que tomaram conta do Brasil e um movimento de jovens da trama, em busca de novos direitos e com uma bandeira clara de repúdio à corrupção.Essas cenas haviam sido escritas e gravadas com meses de antecedência.
"Comecei em sintonia com o que estava acontecendo no país e sigo tratando de temas que estão na ordem do dia. É hipocrisia negar a realidade", diz o autor. "Aproveito a liberdade que o horário proporciona para tocar em determinados temas que considero relevantes. A dramaturgia não pode ser chapa-branca."
Segundo Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia brasileira e latino-americana pela USP e membro da Academia Nacional de Artes da Televisão e Ciências de Nova York (uma das responsáveis pelo prêmio Emmy), o caráter progressista de "Saramandaia" está em sintonia com as telenovelas do país, a partir de 1970.
"Tem sido este um grande diferencial e exemplo da telenovela brasileira ao redor do mundo. Uma contribuição que teve seu início na década de 1970, particularmente com a vinda de dramaturgos para a TV", afirma.
Alencar e Ricardo Linhares concordam, no entanto, que a sociedade brasileira e mundial tornou-se mais conservadora nas últimas décadas.
"Tenho em mente que o grande público [brasileiro] não mora na zona sul do Rio, nem nos Jardins de São Paulo. É heterogêneo e deve ser tratado com respeito", diz o autor, que colocará a homofobia, o bullying e o mensalão no foco dos próximos capítulos de "Saramandaia".
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