Dengue e outros descasos
Caso 1 - Ana, 22, foi levada por moradores a um hospital da zona norte de São Paulo. Desnutrida e desidratada, a jovem estava com dengue. Ficou internada dois dias e teve alta. Acionados, os agentes de saúde foram procurá-la no endereço que constava no registro hospitalar para orientar moradores sobre prevenção e procurar criadouros do mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue.
No endereço, havia um cemitério. De início, os agentes pensaram se tratar de um engano ou de uma brincadeira de mau gosto. Mas ao questionarem um coveiro descobriram que, sim, Ana morava num barraco nos fundos do cemitério.
Além de Ana, outras quatro pessoas (dois casais) vivem há quatro anos no local em barracos improvisados. Não há água, luz ou esgoto. Só lixo e mato. Todos são usuários de crack. Um rapaz é HIV soropositivo, o outro tem tuberculose. Ninguém recebe tratamento médico. Ah, sim! Foram encontrados vários criadouros do mosquito da dengue no terreno.
Caso 2 - Agentes de saúde recebem uma reclamação de moradores de que uma casa estava abandonada e possivelmente cheia de criadouros do Aedes. Ao chegarem ao imóvel, eles se deparam com duas idosas, encolhidas no sofá velho, assistindo à TV. A primeira, de 83 anos, é a dona da casa. A segunda, de 65 anos, é a sua cuidadora.
Ambas vivem sozinhas em uma casa de quatro cômodos bastante deteriorada. Dois quartos ficam fechados. Estão cheios de entulhos, papéis e móveis que, de tanto cupim, desabaram, aos pedaços. A mais velha, diabética, escaras pelo corpo e imobilizada na cama/sofá, conta que os móveis e os papéis pertenciam ao genro e à filha, ambos já mortos. A neta é quem a "visita", uma vez por mês, para levar mantimentos. É também quem "administra" a aposentadoria de um salário- mínimo da avó.
A cuidadora de 65 anos, hipertensa e com artrose, é também responsável por fazer a comida. Vive no lugar há anos, mas diz que, sozinha, não consegue fazer a limpeza. Ah, sim! No quintal, foram encontrados vários focos do mosquito da dengue.
As duas situações reais foram relatadas por uma funcionária da Prefeitura de São Paulo. São apenas duas histórias dentre tantas outras que fazem parte do seu dia a dia. Dengue, nesse contexto, parece até um "mal menor". Como falar sobre prevenção nesses ambientes? Qual o sentido de orientar sobre o risco de pneus e latinhas cheios de água para quem vive doente no meio do lixo?
A funcionária tem razão para estar angustiada e triste. Ela procurou ajudar essas pessoas, informando os casos a serviços sociais do município. Mas, de antemão, sabe que dificilmente haverá solução para eles. Em uma cidade como São Paulo, há casos ainda mais escabrosos na fila de espera. Histórias como a de Ana e das velhinhas são só mais duas.
Em tempo:
A capital paulista enfrenta um aumento no número de casos de dengue. De janeiro até o início deste mês, foram registradas duas mortes e 2.457 casos da doença --mais do que o dobro de 2012. O aumento se deu em bairros mais periféricos da cidade. Rio Pequeno, na zona oeste, e Cangaíba, na zona leste, lideram o ranking.
Cláudia Collucci é repórter especial da Folha, especializada na área da saúde. Mestre em história da ciência pela PUC-SP e pós graduanda em gestão de saúde pela FGV-SP, foi bolsista da University of Michigan (2010) e da Georgetown University (2011), onde pesquisou sobre conflitos de interesse e o impacto das novas tecnologias em saúde. É autora dos livros "Quero ser mãe" e "Por que a gravidez não vem?" e coautora de "Experimentos e Experimentações". Escreve às quartas, no site.
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