domingo, 6 de outubro de 2013

Crise alérgica domada - Bruna Sensêve

Técnica aperfeiçoada em hospital da USP cura 90% dos casos de alergia alimentar com doses graduais dos produtos que provocam o sistema imunológico. Isso é feito até que se crie resistência total a eles


Bruna Sensêve

Estado de Minas: 06/10/2013 



A analista Andrea Fernanda não optou por fazer tratamento. Ela preferiu tirar o camarão de sua dieta (Geyzon Lenin/Esp. CB/D.A Press    )
A analista Andrea Fernanda não optou por fazer tratamento. Ela preferiu tirar o camarão de sua dieta


No início dos anos 2000, Márcia* era o caso que mais intrigava a alergologista Ariana Campos Yang, do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Quase que semanalmente, a paciente sofria um choque anafilático que a levava para a unidade de tratamento intensivo (UTI). Bastava o cheiro do agente causador da alergia: o ovo. Márcia não saía de casa. E onde morava ninguém podia ingerir o alimento tão comum nas receitas brasileiras. Ariana Yang pesquisou bibliografia especializada e encontrou um trabalho italiano que poderia ajudar sua paciente. “Na época, ela tinha 25 anos. Hoje, perto dos 40, come tudo, inclusive ovos”, comemora. O sucesso da dessensibilização alimentar levou a terapia a outros cantos do país e rende uma lista de espera de cerca de um ano e meio.

A primeira tentativa de “curar” pessoas com alergias alimentares severas se deu há cerca de 100 anos e seguia o princípio das vacinas: aplicar doses menores e intravenosas do agente causador do problema. A reação no organismo dos voluntários foi dramática e a ideia, abandonada pela comunidade médica por um longo período. A questão virou quase um tabu. Ninguém mais falava em fazer vacina para rinite ou asma e nem sequer era cogitada a busca por terapias para a alergia alimentar. “Até que surgiu esse novo trabalho em 1984 de um grupo de pesquisadores italianos com uma eficácia de 73% nos pacientes tratados”, conta Ariana.

A alergologista pondera que a metodologia não era a mais confiável pelo fato de não usar um grupo controle, isto é, um número de pacientes não submetidos ao tratamento para que resultados fossem comparados. “Cientificamente, ainda era preciso comprovar que o resultado animador não era aleatório.” A técnica evoluiu. A principal mudança é que o paciente não precisa de internação e pode seguir a vida normalmente depois das sessões terapêuticas. “Temos outras alterações com relação à sequência e o número de doses. Hoje, são vários grupos que fazem o procedimento, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em Bauru (SP). A técnica ainda não está disseminada, mas está sendo difundida pelo Brasil”, comemora a médica. 

O tratamento consiste em 12 a 15 sessões de imunoterapia oral, quando são ministradas doses crescentes de um extrato do agente causador da alergia. Inicialmente, é pesquisado um histórico clínico com exames que possam garantir que o paciente permanece alérgico. “Alguns alérgicos estão sob restrição há tanto tempo, às vezes desde bebê, que a alergia até sarou e a pessoa não percebeu”, explica Ariana. Com a confirmação, um teste alérgico cutâneo busca a concentração tolerada do alimento. A partir desse limiar, é produzido o extrato diluído do alérgeno e a concentração dele vai aumentando a cada sessão até que o paciente aceite a quantidade total.

“A maioria tem reação durante o tratamento mesmo quando, de tão diluído o alérgeno, a pessoa está quase tomando água. Por isso é muito importante não fazer esse processo sem o acompanhamento médico”, alerta a alergologista, ressaltando que o tratamento somente é indicado para pacientes com mais de 5 anos de idade e que tiveram o diagnóstico da alergia persistente, chamada de IgE. Esse tipo mais grave refere-se a reações danosas, algumas vezes fatais, causadas pelo sistema imunológico. O critério é extremamente importante porque alergias a alimentos comuns tendem a ser predominantes no primeiros meses de vida. Com o passar dos meses, no máximo anos, o próprio corpo desenvolve a tolerância necessária.

Esse foi o caso da filha da servidora pública Vanessa de Almeida, 29 anos. A pequena Júlia, hoje com 2 anos e 9 meses, teve severas reações gastrointestinais a partir do quarto dia de vida. A busca foi grande em torno do agente causador do sangramento nas fezes da recém-nascida, mas a descoberta da alergia à proteína do leite de vaca (APLV) se deu aos 4 meses de idade. O gastropediatra indicou um leite específico e suspendeu todos os alimentos que tivessem qualquer traço de leite tanto para a mãe quanto para o bebê.

“Toda vez que ela era exposta, passava mal. Até o arroz com qualquer ingrediente que fosse passado na manteiga. No caso da Júlia, ela associou o ato de mamar com a dor e, como a alimentação dela era basicamente de leite materno, quis parar de comer”, relata Vanessa. As restrições foram mantidas até 1 ano e meio, quando o alimento voltou à dieta da criança. “Percebemos que ela continuou com a sensibilidade de uma forma mais leve. Hoje, ela está ótima e come de tudo.”
De adulto Diretora da Associação Brasileira de Alergia e Imunopatologia – seção Distrito Federal, Fernanda Marcelino afirma que esse tipo de sensibilidade não é comum em adultos. Normalmente, as alergias nos mais velhos estão ligadas a alimentos fáceis de serem evitados, como o camarão, amendoim, castanhas e frutos do mar. “A pessoa que tem alergia alimentar recebe orientação de exclusão do produto da dieta. Fazemos uma orientação e um plano de ação para o paciente no caso de uma exposição acidental”, detalha. 

Essa é a rotina da analista de relações internacionais Andrea Fernanda Britto, de 25 anos. Desde que teve a primeira crise alérgica ao camarão, aos 8 anos, ela quer distância do crustáceo. “Minha voz começou a sumir, a garganta fechou e meus pais se desesperaram. Não deu tempo nem de ir ao hospital. Fomos à farmácia mais próxima onde tomei um antialérgico”, conta. Outra ingestão acidental foi aos 10 anos e nunca mais. Andrea preferiu excluir o camarão do cardápio. “Não tentei fazer tratamento, aprendi a conviver bem com isso, mas lembro que o gosto era muito bom.”

Os alérgenos passíveis à terapia de dessensibilização precisam estar presentes no dia a dia do paciente. No caso do brasileiro, são basicamente o leite, os ovos, o trigo e a soja. Isso porque é preciso que o organismo mantenha uma memória imunológica. O sistema imune é regulado pela presença do antígeno, da molécula causadora da alergia no corpo. Se o paciente não tem contato com ela, é como se perdesse o aprendizado de tolerância ao antígeno, o que pode fazer com que a alergia volte.


* Nome fictício a pedido da médica

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