O Globo 30/11/2013
Chega-me de Teresina, Piauí, “O
rato da roupa de ouro”, narrativa
infantil de Dilson Lages Monteiro,
com ilustrações de Angela Rego
(Nova Aliança Editora/Portal
Entretextos). Um delicado esforço
para aproximar as crianças de um dos mais
complexos temas do mundo contemporâneo: o
poder. Crianças precisam de limites. A compreensão
da opressão, porém, as ajuda a entender
melhor os limites desses limites e a distinguir
o respeito ao outro do desprezo pelo outro.
Um tema doloroso, que Dilson transforma, porém,
em um relato inspirador.
“A sombra da lua caminhava entre pedras. Galhos
secos espreguiçavam seus braços e pernas”,
começa Dilson, humanizando a natureza e tornando-
a menos angustiante. Os animais que a
habitam vivem sob o jugo de um rato. Ele dá as
regras, ele diz como cada um dos bichos deve
ser. “Vence os dias o mais adaptado, o mais rápido,
o mais atento, o maior em esperteza e sabedoria”,
pensa. E é assim, segundo seus próprios
valores, e sem considerar os alheios, que governa
um casarão abandonado.
Tanto o rato é esperto que, em vez de impor seu
governo com a violência, o impõe com a adulação.
Sua política é a da submissão de almas. Tira seu
poder não tanto da força, que não tem, mas da astúcia,
precioso e perigoso veneno. Mas o rato também
tem seu limite: a cobra, que desliza pelas frestas
do casarão. Diante dela, o rato todo poderoso
treme. A cobra é seu inferno e, mais que isso, a
fronteira que delimita seus atos.
Talvez — penso aqui — a cobra o leve a experimentar
a precariedade do poder. Escritores conhecem
isso muito bem. Com seus rascunhos,
anotações, esboços, eles tentam controlar narrativas
e personagens sobre os quais, a rigor, não têm
controle algum. Todo escritor tem um limite: sua
própria fraqueza. Também o rato, cada vez que se
defronta com a cobra, prova dessa fronteira precária
que ele, no entanto, logo ignora.
O relato de Dilson é narrado por um frágil gafanhoto
que, a toda hora, é obrigado a ouvir do rato
uma ameaça: “Quero ver apodrecer cada pedaço de
sua folhagem, gafanhoto imprestável”. O poder é
cheio de vielas e de becos escuros. Na escuridão de
suas entranhas muita coisa parece ser o que não é.
“Cheguei a pensar que me poupava em sinal de gratidão”,
admite o gafanhoto. “Eu ensinei o rato a pular e isso lhe
permitiu saltar para um galho quando, de surpresa,
uma serpente deslizava, pronta para o ataque”. Mas
se existe algo que o rato — o poder — não tem
é gratidão. Não tem limitespara seu ódio. Também com os
grilos e os caracóis o rato aprendeu a transformar-se em coisa
morta, aprendeu a camuflar-se.Julgava não lhes dever nada por
isso. Mas o poder vê a piedade como uma forma de medo.
Qualquer leitor, por mais jovem que seja, pode
constatar as insuficiências do poder que o rato
acredita possuir. A começar por sua veneração pela
serpente — “Admiro mesmo os mais fortes” —
que, apesar de majestosa, é a fronteira de sua desgraça.
O rato admira ainda as borboletas e os insetos
voadores, porque, do contrário, com o frágil recurso
da leveza, são capazes de escapar de situações
que, para ele, pesado e iludido, se transformam
em intenso perigo.
Um dia, uma tempestade arrasta o rato poderoso
para um buraco, onde ele se vê prestes a sufocar.
A natureza é muito mais forte do que ele, com
sua arrogância, supõe. O gafanhoto se protege da
enxurrada montado no topo de uma árvore bem alta.
“Do rato,só tive notícias no dia seguinte.
Para minha surpresa, dava ordensem um palácio”.
A arrogância do poder não tem fim e,mesmo da
desgraça, um rato pode tirar mais força. No buraco,
seu corpo, em vez da lama,se cobre com um estranho pó
amarelo, que ele logo entende tratar-se de ouro. Mais ainda:
logo entende que se tornou num pequeno Midas, que transforma
tudo o que toca em ouro também. “O rato, então, percebeu
que um poder misterioso tornava ouro tudo o que tocava”.
A generosidade do poder parece inesgotável,enquanto,
na verdade, ela só se impõe sob certas condições.
Se damos atenção a suas palavras,vemos que esse poder
gerado pela desgraça se torna ainda mais ameaçador. Mas
é ele quem ameaça:“Quem não obedecer transformarei em ouro”.
Só resta a sapos, grilos e gafanhotos, abatidos
como escravos, transportar pedaços de ouro para
a toca real. “No buraco já não cabia peça de
ouro”. Mas o rato irá aprender que o poder é transitório,
que a realidade dá bruscas guinadas e,
quando menos se espera, inverte o destino das
coisas. A realidade é fluida, móvel, e mesmo o
mais sólido poder, mais cedo ou mais tarde, pode
ser arrastado pela enxurrada do real. Uma nova
tempestade transforma seu buraco de ouro e pureza
em um mar de lama. “Parece que as águas
de todos os esgotos da cidade andavam juntas,
tamanho a força com que entravam no esconderijo
dos bichos”. A lama é o reverso do ouro. Ela
surge para indicar não só os limites do poder,
mas parte expressiva de sua origem.
O poder é fluido porque ele é sempre uma tomada
de posição diante do poder. O que faço? O que
efetivamente posso fazer? O que faço com o que
efetivamente posso? Perguntas complexas atapetam
o caminho dos poderosos. A única maneira de
tornar-se digno do poder é, em vez de descartá-las,
enfrentá-las. Mas o rato, confuso, levado pela lama
revolta, desmaia. “Acordou faminto, no antigo buraco
em que morava. Olhou ao redor. Ninguém. Ia
sair, mas tremeu. Sentiu a respiração das serpentes”.
O limite do poder é outro poder.
Enquanto isso, o grilo — que sempre apostou
na leveza e nos saltos e se contentou com a precariedade
de sua pequena força —, sarado da
perna, volta a sorrir. Ele compreende que o poder
é leve e transitório. Nunca dele esperou a salvação,
mas apenas uma forma precária de proteção.
Nunca o viu como destino final, mas como
um caminho não para levá-lo para fora de si, mas
para trazê-lo de volta a si. Por isso continua livre.
A história de Dilson Lages Monteiro conduz
seus pequenos leitores a uma confrontação precoce
(e divertida) com a fragilidade dos valores humanos.
Mostra-lhes que eles são móveis, que eles
são instáveis, que eles são transitórios — que eles
são, enfim, o que define o próprio humano