MORALISMO OU DRAMA SANITÁRIO?
França se divide sobre projeto de lei do governo que penaliza clientes em até R$ 11.900
FERNANDO EICHENBERG
Correspondente
eichenberg@oglobo.com.br
-PARIS- O governo esperava aprovar com relativa tranquilidade
o novo projeto de lei sobre a prostituição
na França, mas foi surpreendido por um acalorado
debate, com divisões parlamentares — mesmo no
seio de sua maioria, liderada pelo Partido Socialista
(PS) — marcadas por oposições entre associações
civis, intelectuais e a falta de unanimidade na opinião
pública. A nova legislação, com votação prevista
na Assembleia Nacional para o dia 4, prevê a penalização
dos clientes de prostitutas com a aplicação
de uma multa de € 1.500 (R$ 4.760), aumentada para
€ 3.750 (R$ 11.900) em caso de reincidência. Segundo
sondagem do instituto CSA esta semana,
68% dos franceses seriam contra a penalização dos
clientes de prostitutas.
A proposição foi discutida ontem num Parlamento
com poucos deputados presentes, ao mesmo
tempo em que nas proximidades ocorriam manifestações
de rua contra e a favor da lei. No plenário,
a ministra do Direito das Mulheres, Najat Vallaud-
Belkacem, definiu a prostituição hoje na França como
um “drama sanitário”, defendeu a lei como um
passo importante no combate ao proxenetismo e
ao tráfico de prostitutas, e refutou que esteja havendo
uma intervenção moral do Estado na vida sexual
dos cidadãos.
— Por que pagar pelo corpo de uma mulher? Pela
razão de que elas consentiriam isso? Esse é o argumento
mais fácil e mais preguiçoso, o mais inoperante
para justificar a compra de serviços sexuais. A
questão não é a sexualidade, não estamos aqui para
fazer a polícia da moral, mas para defender nossos
princípios mais essenciais — disse a ministra.
26 PARLAMENTARES NO BLOCO DO ‘NÃO’
Levado ao Parlamento por deputados do PS e da
União por um Movimento Popular (UMP), principal
partido de oposição, o projeto de lei não agradou
a todos. Um grupo de 26 parlamentares, de diferentes
tendências políticas, incluindo senadores,
lançou uma petição na qual acusa a proposta de
“inspiração moralizadora, marcada por uma preocupação
de higienismo social”, sem levar em conta
a “complexidade” do tema. “Que mulheres e homens
recorram à prostituição não forçada é uma
realidade. Estigmatizá-los não resolve nada. É hora,
para a sociedade e a fortiori para o legislador, de
romper com esses preconceitos que humilham essas
mulheres e homens e que não honram aquelas
e aqueles que os utilizam por razões puramente
ideológicas”, diz o texto.
Para Morgane Merteuil, dirigente do Sindicato do
Trabalho Sexual (Strass), que defende os direitos
das “trabalhadoras do sexo”, a penalização do cliente
favorecerá a precarização das prostitutas e também
os riscos de casos de violência. “Tornar o exercício
da prostituição mais difícil é sempre torná-lo
mais perigoso, mais violento; e aquelas que pagam
o preço são as menos privilegiadas, aquelas que,
entretanto, se pretende mais ajudar. Quanto mais
difícil para eu entrar em contato com clientes, mais
minhas exigências em relação a eles diminuem.
Aumento com isso minha probabilidade de ser exposta
a um certo número de riscos, principalmente
a violências”, escreveu.
O Strass exige a revogação de todas as leis que
atrapalham a prática da prostituição. Contra o projeto
de lei estão também a organização Médicos do
Mundo, o ex-ministro socialista da Cultura Jack
Lang, a atriz Catherine Deneuve e a filósofa feminista
Elisabeth Badinter, que considerou a abolição
da prostituição “uma quimera”. A favor estão a associação
feminista Osez le Feminisme, grupos de auxílio
a prostitutas como Mouvement du Nid, o geneticista
Axel Kahn, a ex-ministra conservadora Roselyne
Bachelot e a pensadora Sylviane Agacinski,
para quem a prostituição é “uma servidão arcaica”
e “o comércio da carne, uma negação da pessoa”.
AJUDA A QUEM QUISER MUDAR DE VIDA
Relatora do projeto, a deputada Maud Olivier
(PS) acusou de “hipocrisia” os opositores da lei:
— Basta que apenas uma prostituta se diga livre
para que a escravidão das demais seja respeitável
ou aceitável? Como achar glamour nas dez à quinze
penetrações diárias a que são submetidas prostitutas
forçadas por razões evidentemente econômicas,
com consequências dramáticas para a saúde?
O Escritório Central para a Repressão do Tráfico
de Seres Humanos estima em até 40 mil as prostitutas
na França (já o Strass fala em até 400 mil), a maioria
vítima de redes de tráfico e de proxenetismo de
países do Leste Europeu (Bulgária, Romênia), da
África (Nigéria, Camarões), da América do Sul (Brasil
incluído) e da China. O projeto de lei prevê também
a implantação de sistemas de proteção e de assistência,
com acompanhamento social e regularização
temporária de documentos para prostitutas
estrangeiras envolvidas pelo tráfico e proxenetismo
que quiserem mudar de vida.
A Frente de Esquerda anunciou apoio à nova lei,
diferentemente de certos deputados da direita, descontentes
com a facilitação da regularização de
prostitutas ilegais no país. O grupo dos ecologistas
avisou que votará contra, argumentando que o projeto
de lei não faz distinção entre as prostitutas vítimas
das redes de tráfico e as independentes.
Com políticas distintas, vizinhos fazem da iniciativa francesa um ‘laboratório
Mesmo países que descriminalizaram
a atividade, como a Holanda, ainda
enfrentam redes de tráfico
-PARIS- Os relatores do projeto de lei francês sobre a
prostituição se inspiraram em grande parte no
exemplo da Suécia, que desde 1999 proíbe a “compra
de serviços sexuais”. A prostituição no país escandinavo
não é ilegal, mas os clientes de prostitutas
estão sujeitos a multas e mesmo a uma pena de
até seis meses de prisão. O valor da penalidade é
calculado em relação à renda do cidadão condenado,
geralmente correspondente a meio salário
mensal. Segundo dados do governo, a prostituição
de rua foi reduzida à metade na década posterior à
aprovação da lei — de 2.500 a 1.250 prostitutas —
mas aumentou fortemente na internet.
A vizinha Noruega aprovou uma legislação similar
em 2009, mas que pune também os noruegueses
que recorrerem a prostitutas no exterior.
Em julho de 2012, no entanto, um relatório
do Pro Sentet, um centro de ajuda às prostitutas
da capital, Oslo, apontou que a situação havia
piorado, com o deslocamento do comércio sexual
para a clandestinidade e um aumento de
casos de clientes violentos.
Na Holanda, dotada de uma legislação considerada
uma das mais liberais da Europa, a prostituição
é legal e autorizada. Desde o ano 2000,
as prostitutas têm status jurídico e direito a benefícios
públicos sociais. As prefeituras são responsáveis
pela concessão de licença para abertura
de estabelecimentos que empregam prostitutas.
Apesar disso, o país ainda enfrenta o problema
da prostituição ilegal e das redes de tráfico.
Já na Espanha, desde 2002 a prostituição é
legal em prostíbulos, mas proibida nas ruas.
LEI NA ALEMANHA ATRAIU IMIGRANTES
No caso da Alemanha, a prostituição é legal desde
2002. As prostitutas têm direito a seguro-desemprego
e seguro-saúde, podendo ser autônomas ou assalariadas.
Mas segundo estudos, passada uma década,
apenas 1% das prostitutas tem um contrato
de trabalho. Dos cerca de 400 mil trabalhadores sexuais
alemães estimados, somente 44 (sendo quatro
homens) se registraram para obter os benefícios
da Previdência Social. Em seu livro recém-lançado
“Prostituição, um escândalo alemão”, a feminista
Alice Schwarzer sustenta que a legalização da venda
de serviços sexuais atraiu para o país “as mulheres
mais pobres dos países vizinhos” (as autoridades
estimam que em torno de 80% das prostitutas
são estrangeiras), colocando-as à mercê da exploração
e das redes clandestinas.
Para a ativista, a Alemanha se tornou “uma paraíso
para os cafetões”. Nos últimos anos, bordéis gigantescos
surgiram, contando, segundo as estimativas,
com 1,2 milhões de clientes diários. Em
“Chamada contra a prostituição”, publicado em
sua revista “Emma”, Alice Schwarzer fez um apelo
para que a lei alemã de 2002 seja revista, e como
exemplo, citou a iniciativa francesa. Se a França
aprovar a nova legislação na semana que vem, os
vizinhos europeus estarão atentos aos resultados
obtidos pelo país nos próximos anos. (F.E.)
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