domingo, 10 de novembro de 2013

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » O palco, a janela e a vida‏

Estado de Minas: 10/11/2013 






Entro no Palácio das Artes de Belo Horizonte para assistir a Um baile de máscaras, de Verdi. Estou imerso no passado e no presente, vendo tantos rostos amigos quando, de repente, ouço a notícia de que, na véspera, havia morrido o Caiado, Carlos Eduardo Prates. Volto àquele dia (há mais de 50 anos) em que ele fez um teste musical comigo para aceitar-me no Madrigal Renascentista, no naipe dos baixos. Com Isaac Karabchevisky e Carlos Alberto Pinto Fonseca (também falecido), criou o Madrigal, um fenômeno musical brasileiro que percorreu o mundo. Os três seguiram caminhos musicais paralelos e, me parece, foram alunos de Koellreuter, que vi fazer uma palestra em Belo Horizonte.

Assisto, maravilhado, ao milagre operístico dirigido por Fernando Bicudo. Ele foi responsável também por um período excepcional da ópera no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. A vida é uma ópera. A vida é um palco. Tudo é representação.

Ainda há pouco estava na janela do hotel e olhava o Parque Municipal de Belo Horizonte. Drummond inventou que Greta Garbo se encontrou, secretamente, com ele e Abgar Renault naquele jardim. Naquele jardim vi Klauss Viana fazendo seu filho Rainer andar num burrinho. Naquele jardim, em frente ao Francisco Nunes, vi Tônia Carrero e Paulo Autran cantarem Qué que ocê foi fazer no mato Maria Chiquinha… Isto foi depois de terem encenado Entre quatro paredes, de Sartre.

Poderia permanecer (intemporalmente) nesse teatro, que vi nascer ao tempo do governador Israel Pinheiro, ou deixar-me ficar na janela desse hotel – jovem e eternamente. Lá longe está a Serra da Piedade! Numa certa noite escalamos a montanha e lá em cima ficamos bebendo, comendo e falando de nossas perplexidades frente às estrelas!

No hall do teatro, Marina e eu recebemos o carinho dos leitores. A cidade vive um belo momento cultural. Mas quando, em 1957, voltei a viver aqui, creiam-me, a cidade tinha 650 mil habitantes. A Avenida Afonso Pena tinha bondes que iam para Santa Tereza e Santa Efigênia. Depois vieram os trólebus. E um deles atropelou o crítico Fábio Lucas na Rua da Bahia, ali onde ficava a Livraria Itatiaia e onde a gente se reunia todo fim de dia. Claro, antes a livraria era lá no Dantés. E quando Pedro Paulo Moreira lançou a tradução do best-seller Doutor Jivago passou a ser respeitado além de Nova Lima.

Nova Lima era longe. Longe era Lagoa Santa e Vespasiano ou Venda Nova.

Até a Pampulha era longe. A cidade ia pouco além da Avenida do Contorno. E quando aportei aqui, com aquela frágil mala de papelão e juventude, fui buscar abrigo lá nas quebradas de Santa Efigênia, na casa do tio Sebastião e tia Vicentina. Como dizia aquele matuto: “Se eu contar minha vida debaixo de um pé de amora, enquanto eu conto você chora!”. Até o Luiz Ruffato chora.

Mas desta janela vejo a Praça Sete. Ali um dia Teotônio Jr., travestido de Fidel Castro, saiu correndo das pauladas da TFP (Tradicão, Família e Propriedade). Durante três anos, bancário, morando em pensão, ia ao Banco do Brasil fazer a compensação de cheques do Banco do Comércio Varejista. Claro, não havia internet. E eu morria de inveja de meus colegas da Faculdade de Filosofia, que podiam estudar sem trabalhar.

Não sei se as pessoas devem ficar numa janela dessas muito tempo encenando na lembrança a ópera da vida. Dessa janela vejo aquele viaduto de Santa Tereza que o romance O encontro marcado, do Fernando Sabino, eternizou. Meio bêbados de vida, ele, Hélio, Otto e Paulinho arriscavam a vida ali. Minha geração os imitou como eles imitaram Drummond e outros. Ainda outro dia me chamaram para um depoimento sobre Fernando Sabino, que faria agora 90 anos. Ele dizia que era capaz de descrever casa por casa várias ruas da cidade.

Numa mesma semana estive de novo duas vezes em Belo Horizonte. E isto tem consequências crônicas. Ao passar diante do Edifício Maletta comecei a contar para a jovem que me acompanhava uma série de coisas idas e vividas – Lua Nova, o Lucas… Ela me olhava como se eu tivesse a idade de Aarão Reis, que construiu a nova capital de Minas. Ela me olhava e eu falava, falava instalado no passado.

No passado que me trespassa e não passa.

A vida é um palco. Uma ópera. Uma janela.


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