Comparação do DNA de fósseis de cães e lobos com o de animais vivos conclui que processo de mudança dos animais selvagens em bichos de estimação ocorreu entre 18 mil e 32 mil anos atrás
Roberta Machado
Estado de Minas: 24/11/2013
Animal ajuda a procurar explosivos na Inglaterra: origem dos cães domésticos ocorreu antes do advento da agricultura, indica a nova análise |
Pastor belga, spitz alemão, bulldog francês, cocker spaniel inglês, pequeno cão holandês. Se os nomes internacionais já eram uma pista da grande influência europeia na árvore genealógica dos cachorros, pesquisadores apresentam agora a prova científica de que o melhor amigo do homem tem uma pata no Velho Continente. Foi ali, de acordo com a comparação genética de centenas de animais, que os primeiros lobos cinzentos passaram a acompanhar os humanos e a tomar uma forma mais amigável. A conclusão, publicada na revista Science desta semana, questiona a teoria aceita até então, de que foi a agricultura que atraiu esses animais para o convívio com pessoas. De acordo com o novo estudo, os cachorros teriam surgido entre 18 mil e 32,1 mil anos, muito antes das primeiras sociedades agrárias.
Para descobrir a história da domesticação dos lobos, os cientistas extraíram o DNA mitocondrial dos fósseis de oito cães e 10 lobos de até 36 mil anos e os compararam ao código genético de 77 cachorros, 49 lobos e quatro coiotes de hoje em dia. Assim, criaram uma árvore filogenética que mapeia a distância entre o DNA de fósseis e o de animais vivos.
Em comparação com todas as outras amostras, foram os cães da Europa que mais demonstraram similaridade genética com parentes de outros países e também com os lobos antigos. Isso indica, de acordo com os pesquisadores, que a domesticação dos bichos ocorreu no continente. “Há, essencialmente, quatro grandes grupos de cães domésticos de diversidade de DNA mitocondrial. E cada um desses grupos tinha um cão antigo ou um lobo antigo europeu que era ancestral direto de cães modernos”, explicou à Science Robert Wayne, biólogo evolutivo da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos.
A descoberta contesta outras hipóteses sobre a origem dos cães domésticos. A primeira teoria afirma que a transformação de lobos em animais de estimação ocorreu no Oriente Médio. “Estudos anteriores sobre variações genéticas do genoma mitocondrial usaram amostras limitadas ou de pequenas regiões”, defende Olaf Thalmann, pesquisador da Univesidade de Turku, na Finlândia, e principal autor do estudo. “Aqui, nós combinamos dados derivados de genomas mitocondriais completos e parciais. Dessa forma, nós conseguimos determinar a variação genética que ocorreu no passado”, salienta.
As outras linhas de pesquisa sustentavam a ideia de que os canídeos haviam se aproximado dos humanos atraídos pela atividade agrária, onde encontravam alimento em troca da companhia que ofereciam aos amigos de duas pernas. A nova data estimada pela equipe de Thalmann torna essa explicação impossível, já que a agricultura só teria sido desenvolvida aproximadamente 6 mil anos depois da domesticação dos animais.
O pesquisador ainda acredita em uma relação de benefício mútuo entre pessoas e cães, mas acrescenta que a história teria sido um pouco diferente do que se contava até hoje. Os lobos poderiam ter se alimentado das carcaças deixadas pelos homens, que se aproveitariam do instinto dos mamíferos para caçar presas de grande porte, como cavalos ou mamutes. “Essa proximidade pode ter se desenvolvido em uma interação mais intensa com o amansamento desses animais selvagens e a incorporação dele em residências”, especula Olaf.
Impasse Especialistas de todo o mundo têm enfrentado três grandes problemas na busca de uma solução para o mistério sobre o surgimento dos cães: o primeiro é a similaridade entre os lobos e os primeiros cães, que não mostravam muitas distinções físicas. Levaria alguns milhares de anos para que as duas espécies se separassem completamente. “Na evolução das espécies, os indivíduos vão se adaptando às mudanças do ambiente onde vivem. No caso dos cães, deixaram de ser caçadores e se adaptaram à vida ao lado do homem. Durante esse processo, podem ocorrer mutações no DNA, como uma resposta ao processo de adaptação”, ensina Denise Andrade, professora de veterinária e pesquisadora do Laboratório de Genética da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A segunda questão é o cruzamento de lobos com cachorros, que adicionou novos genes à mistura de DNA. No entanto, comparações atuais entre as duas espécies não têm serventia, já que os lobos cinzentos que deram origem aos cães modernos estão praticamente extintos. De acordo com a nova pesquisa, o parente lobo mais próximo dos cachorros atuais é um espécime de 14,5 mil anos, encontrado em uma caverna na Suíça.
A última questão seria a migração dos cachorros, que foram para outros continentes e acabaram constituindo novas raças. Essa mudança geográfica pode apresentar provas falsas no quesito diversidade genética, um risco do estudo que aponta a origem europeia. “Os autores mencionam que não foi possível estudar o DNA mitocondrial de cães ancestrais da China, outro possível local de origem desses animais”, ressalta Denise Andrade.
O impasse deve perdurar até que seja esclarecido por um exame mais minucioso do DNA canino. A prova cabal estaria no raríssimo DNA nuclear das amostras fossilizadas, geralmente danificadas demais para fornecer material de qualidade. Foram esses genes originados nos núcleos das células, lembra Robert Wayne, que deram pistas fundamentais para a própria evolução humana. “Como com os neandertais, acho que isso vai acertar a maior parte da história. Em termos de concluir o debate, tem muito mais a ser feito. Claro, é o jeito da ciência”, conclui o pesquisador.
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