ZERO HORA - 29/12/2013
Vou
citar dois filmes antigos. Um é o inglês Mero Acaso, de 1999. Primeira
cena: um rapaz bate na porta do vizinho, que é psiquiatra, e diz que
precisa desabafar. São 6 horas da manhã, o vizinho ainda está de pijama,
mas diante do inusitado da situação, convida-o para entrar e o acomoda
numa poltrona.
O outro filme é o francês Confidências Muito
Íntimas, de 2003. Um mulher está se separando e procura um psiquiatra
pela primeira vez. Entra sala adentro e já começa a contar seu drama,
sem dar tempo para o homem respirar. Ele fica absolutamente envolvido
pela história dela.
Mesmo que você não tenha visto estes filmes,
pode imaginar o que eles têm em comum. No filme inglês, o homem se
enganou de porta e bateu na casa de um engenheiro, que ouve tudo quieto e
só então avisa que o psiquiatra mora no apartamento ao lado.
Mesmíssima
coisa no filme francês. A mulher se enganou de porta e invadiu o
consultório de um contabilista. Mesmo depois do engano desfeito, os dois
seguem se vendo para amenizar a solidão um do outro.
Ambos os
filmes demonstram que terapia é, basicamente, uma via de desabafo, de
investigação emocional, de elucidação de si mesmo, e tudo isso se dá
quando estamos dispostos a falar.
Então qualquer amigo poderia
substituir um profissional? Não. Conversar com amigos é ótimo, porém
eles estão comprometidos afetivamente conosco. Conhecem a nossa história
e já não prestam atenção nos detalhes. E tomam um tempo para falar
deles mesmos, o que é natural. Além disso, estes papos são
frequentemente interrompidos pela chegada do garçom, por um telefone que
toca, por outras distrações. E, pra culminar, você não está pagando.
Faz diferença. Você não é o centro das atenções. É um encontro,
literalmente, gratuito. E, em terapia, o foco tem que estar todo em
você. Vigilância total para você não fugir de si mesmo.
Longe de
mim estimular alguém a bater na casa do vizinho para contar seus sonhos
e fantasias secretas. Ele mandará você plantar batatas, com razão. O
que interessa disso tudo é o crucial: o quanto é importante falar. E ser
profundamente escutado. E, mais profundamente ainda, escutar a si
mesmo. Não é fácil ouvir nossa própria voz verbalizando aquilo que
sentimos de forma tão confusa e irregular. É quando passamos a
reconhecer abertamente nossas inquietudes, medos, vergonhas. E a nos
comprometer com o que está sendo dito. A verdade ganha legitimação.
Deixa de habitar apenas o silêncio, onde tudo fica protegido demais.
Alguns
não acreditam em terapia e dizem que não é qualquer um que merece ouvir
nossas intimidades. Mas tem que ser qualquer um, no sentido de qualquer
desconhecido, qualquer pessoa que não tenha nada contra e nada a favor
de você, que não lhe conheça, para poder lhe ouvir sem uma opinião
prévia sobre sua história. De preferência qualquer um com um diploma na
parede e competência para ajudá-lo a se conhecer pra valer.
Que
lhe faça descobrir os efeitos terapêuticos de ouvir a própria voz
assumindo questões que até então não eram enfrentadas. Dá para fazer
isso sozinho também, mas com um interlocutor é mais fácil. Ou menos
difícil. Tente. Nada como bater na própria porta e entrar. Feliz 2014.
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