Tereza Cruvinel - Estes tempos
Finalmente, o governo proporá uma lei
para coibir a violência nos protestos. Até aqui, todos vacilaram na
defesa da criminalização da violência que ameaça a democracia
Estado de Minas: 16/02/2014
Imersos em nossa
indiferença ou em nossa estupidez, frequentemente precisamos que a morte
ou o espantoso despertem nossos sentimentos ou nossa lucidez
obscurecida. Assim dizia Albert Camus, com aquela aguda capacidade de
nos sacudir com sua ironia sobre os absurdos da vida. Às vezes, “é
preciso que algo aconteça, ainda que seja a servidão sem amor, ou mesmo a
guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros”, disse ele discorrendo
sobre os gestos e as palavras que só nos ocorrem depois que alguém
morreu. Talvez, como disse a filha Vanessa, a morte do cinegrafista
Santiago Andrade não tenha sido em vão. Talvez nos desperte para a
gravidade deste tempo em que penetramos, pautado pela violência e pela
intolerância, desejoso de convulsão e não de paz, fruto da lenta
instalação de um certo pensamento entre nós.
É verdade que não há
direita ou extrema direita organizada em partidos no Brasil. Todos eles
se dizem de esquerda, centro-esquerda ou centro. Mas as atitudes e as
ideias que melhor traduzem a direita foram se consolidando nos últimos
10 anos. Ao longo deles, vimos crescer a intolerância para com o
divergente, o preconceito contra os pobres (especialmente a partir do
advento do Bolsa-Família), e entre os pobres, o desejo de ostentar e
consumir, estimulado pelo aumento da renda.
Nesse tempo, ganhou
força o moralismo udenista e os democratas de fachada, que buscavam
pretexto em qualquer palha seca para denunciar “cerceamento”,
“tentativas de controle” , “ameaças à liberdade de expressão”. Depois
veio a negação das instituições políticas, especialmente do Congresso e
dos partidos, que já falharam muito, mas são insubstituíveis no
funcionamento da democracia. A urgência é de aperfeiçoá-los com uma
reforma política, ou de mudar-lhes a composição nas próximas eleições. A
quem, senão a essa direita autoritária e difusa, sem rosto e sem
partido, interessa a desmoralização das instituições que vêm sendo
construídas a tanto custo, desde o fim da ditadura?
O PT, para
chegar ao poder e nele ficar, cometeu seus erros. Não exatamente os de
que é acusado, levando à cadeia seus melhores quadros. Não soube, de
todo modo, enfrentar a vertigem, contrapor-se aos que se valeram de seu
infortúnio para fomentar a descrença na política.
A internet
contribuiu, e, em seu território, os contendores passaram a se esgrimir
com uma violência verbal inaudita, incivilizada, agressiva. Puderam
livremente ofender, tripudiar, agredir, desqualificar, provocar. A
princípio, digladiavam os representantes da polaridade PT-PSDB. Depois,
outras forças entraram no jogo e o dominaram. Ontem, fiquei espantada
com o resumo do perfil de um seguidor meu numa rede social:
apresentava-se como generalíssimo e pregava: “A violência é a única
forma de luta e o sangue é o combustível da história”. A frase é de
Stalin, no contexto da guerra contra Hitler. Tudo isso fomos achando
normal.
As palavras ajudaram a gestar as ações. As manifestações
autênticas e democráticas de junho abriram a porteira para a violência
que mostrou sua cara em julho. As máscaras de Anonymous eram vendidas na
Rua 25 de Março, em São Paulo, por meros R$ 0,50. Achamos normal, mas
obviamente alguém estava pagando. Surgiram os black blocs, mas ai de
quem criticasse essa “nova forma de militância”. Os vândalos quase
invadiram o Congresso, chegando cobrir com uma cusparada um vidro sobre o
gabinete do presidente Renan Calheiros. O Itamaraty por pouco não ardeu
em chamas. Mas passou e respiramos aliviados.
Encerrada a crise
das passagens, a Copa tornou-se o alvo. Feita uma pausa para o Natal, os
rolezinhos acenderam a fagulha e o vulcão da violência aproveitou para
voltou à atividade. Centenas de ônibus incendiados, quebra-quebra de
metrô, barbárie num presídio, justiçamentos na rua. E tome discursos
semifascistas, vindos até de uma apresentadora de televisão.
Nós,
imprensa, fizemos a nossa parte nessa construção canhestra. Ante a
força de Lula e a debilidade da oposição, surgiu a ideia de que a
imprensa deveria substitui-la. Nenhum presidente foi hostilizado como
ele, nenhum governo tratado como o dele. Mais dos que as críticas do PT
aos meios de comunicação, foi a transfiguração do jornalismo em
oposicionismo que mais fomentou as hostilidades à mídia nas
manifestações. Mas, como elas podiam ser úteis para desgastar o governo
Dilma, as emissoras de televisão se curvaram ao autoritarismo vândalo,
cobrindo os protestos com carros não identificados. Nessa fervura,
fatalmente aconteceria uma morte, e ela precisa servir como hora do
espanto para todos.
Finalmente, o governo anuncia que proporá uma
lei que, assegurando o sagrado direito de manifestação, possa coibir a
violência nos protestos. É preciso ter a coragem do cientista Wanderley
Guilherme dos Santos para dizer: “Sou a favor da criminalização e da
repressão às manifestações criminosas, a saber, as que agridam pessoas,
depredem propriedade, especialmente públicas, e convoquem a violência
para a desmoralização das instituições democráticas e representativas”.
Endosso.
A polícia já produziu número maior de mortes, lembra-me
Savio Bones: só em Minas ocorreram seis mortes. Duas, de jovens que
fugindo da repressão violenta, despencaram de um viaduto em BH. A
polícia também precisa de limites para atuar nas manifestações, não está
servindo a nenhuma ditadura. A lei que Dilma proporá precisa tratar
disso. Mas a lei nada resolverá se não acordarmos para o fato de que,
nessa batida, vamos dar em algum buraco. É preciso dar combate às ideias
e às ações que não servem à paz e à democracia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário