Vamos brincar juntos?
Meninas pedem mais brinquedos de
raciocínio e famílias tentam evitar que elas se entreguem a mundo só
cor-de-rosa. Especialista alerta que preferência da criança não pode ser
reprimida
Patricia Giudice
Estado de Minas: 16/02/2014
Aretha e o marido, Diogo, fazem questão que Marina e Carolina brinquem de tudo |
Meninas brincam de bonecas, meninos de carrinho. Para meninas, cor-de-rosa. Para eles, azul. O que já foi uma verdade na criação dos filhos começa a ser quebrado por pais e mães. Cada vez mais meninos e meninas brincam juntos de carrinhos, bonecas, bolas, casinha, jogos de raciocínio, blocos de montar. As próprias crianças deram o grito. Recentemente, uma campanha publicitária refletiu os anseios de uma engenheira norte-americana, Debbie Sterling, que, incomodada por não ter sido estimulada na infância a gostar de ciência, tecnologia, engenharia e matemática, decidiu criar brinquedos para as meninas. Segundo dados da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), dos cerca de 4.500 tipos de brinquedos disponíveis no mercado, 3 mil são para meninas. Os bonecos e bonecas estão em primeiro lugar, mas os jogos de raciocínio têm apresentado aumento significativo nas vendas: de 7% em 2008, fechou 2013 com 12% do mercado.
Em outro episódio, uma garotinha de 7 anos escreveu uma carta para a Lego pedindo mais variedade para o sexo feminino e reclamou que nas lojas só vendem legos para meninos. Ela reclama que as bonecas das meninas ficam sentadas em casa, vão à praia, às compras e não trabalham, enquanto a versão para os garotos faz aventuras, salva pessoas, nada com tubarões e têm um emprego. “Quero que você faça mais meninas e as deixe participar de aventuras e se divertir, ok?”, disse Charlotte Benjamin no texto que se tornou viral na internet.
Numa volta por lojas de brinquedos de Belo Horizonte dá para ver com o que as famílias se deparam. Até os 3 anos, o universo é colorido e sem muita divisão. Nas capas, meninos e meninas brincam juntos em tapetes, cadeirinhas, mesas com sons e cores diversos. A partir dessa idade, os brinquedos começam a se dividir. Atendentes logo perguntam se o desejo é presentear um menino ou uma menina. E levam para uma ala cor-de-rosa, cheia de bonecas.
A inquietação está por toda parte. Aretha Bispo de Castro, mãe e psicóloga de 30 anos, conversa bastante com o marido, o engenheiro de softwares Diogo Kropiwiec, de 33. Pais de Marina, de 4, e Carolina, de 2, foram pegos de surpresa com uma situação que houve na escola. “Para nós, brinquedo não tem gênero”, disse Aretha. Na volta às aulas, Marina chegou em casa um dia com uma coroa de princesa, toda contente. Pediu à mãe um vestido para combinar. “Passou o resto do dia vestida de princesa, foi à rua, padaria, não queria tirar.” Marina contou à mãe que os meninos da sala se vestiram de Batman, mas ela não poderia porque é uma menina. A psicóloga ficou pensativa. Nunca incentivou que a filha gostasse do mundo cor-de-rosa, ao contrário, tentou até evitar. “Como ela estava irredutível, perguntei a ela se conhecia a Batgirl. E expliquei que era a menina do desenho, que vive aventuras como o Batman, e mostrei um desenho. Ela se apaixonou”, disse.
HEROÍNAS No dia seguinte, compraram um papel preto e fizeram juntas máscaras da personagem aventureira. “Expliquei a ela que não só meninos são heróis, meninas também são heroínas. Postei a foto no Facebook e causou um grande movimento. A gente quer que ela seja livre para brincar. Ela já foi o Pocoyo, que é um personagem menino, o Jake da Terra do Nunca faz parte do processo de imaginação dela”, disse Aretha. Agora, diante do episódio, ela e o marido pretendem marcar uma reunião com a direção da escola para conversar. Além da instituição de ensino, enfrentam o problema entre família e amigos. Nos aniversários e datas comemorativas, as meninas ganham bonecas, acessórios cor-de-rosa ou da Barbie. “Nós damos muito kit engenheiro, blocos de montar, brinquedos que trabalham o raciocínio. É o que elas mais têm. Temos muita preocupação em mostrar para elas que o mundo não é da Barbie”, disse.
Fernanda Branco, de 40, é mineira e mora na Noruega há 8 oito anos com o marido, Bjarte, e o filho, Francisco, de 4. Ela fez o que seria inimaginável para algumas mães: presenteou a criança com uma cozinha e boneca. “Tenho essa preocupação de que ele seja exposto a diferentes estímulos de brincadeiras, que não necessariamente estejam vinculados ao fato de ele ser um menino”, justificou. Ela analisa que as crianças são como uma esponja. “Elas absorvem tudo que está a sua volta e assim começam a refletir e se comportar conforme o que elas recebem”, disse. Fernanda ainda estende o que defende para as sobrinhas. Francisco, contou, veste roxo, amarelo, laranja e, da mãe dele pelo menos, as primas não ganham nada rosa. “É um princípio”, disse Fernanda.
FUNÇÃO Segundo a terapeuta familiar e diretora da Associação Brasileira de Psicopedagogia Quézia Bombonatto, o brinquedo tem uma função importante na socialização. “São eles que transmitem para as crianças sobre o mundo social que as crianças vivem.” Ela acredita que a indústria caminha para uma unificação a partir do que pedem os próprios consumidores e analisa que hoje o discurso é outro. “O consumidor mudou. Antigamente davam tijolinhos só para os meninos, hoje temos muitas engenheiras. O conceito mudou, os pais ampliaram suas escolhas e se permitem visitar ambas as sessões de uma loja”, afirmou. Mas, para ela, as meninas avançam mais nos brinquedos masculinos e o contrário pouco acontece.
Quézia Bombonatto aproveita para dar um conselho aos pais: “Não reprimir a escolha das crianças”. Segundo ela, as crianças criam um sentido delas no ato de brincar, não necessariamente é o que o fabricante determina ou a sociedade. O importante, segundo ela, é não podar as crianças. “O fato de uma menina querer, ter uma atração pela bola, não quer dizer que ela será menos feminina. Mas ela só pode dar vazão a esse talento se não for reprimida para a família. Se um pai deixa de dar uma bola para ela estaria reprimindo suas habilidades, é frustrante para a vida toda”, afirma.
Leo adora a casa da Peppa, mas a mãe, Daniella, não incentiva que ele brinque de boneca |
Cada um com sua curiosidade
Mesmo com relutância em presentear as filhas com vassoura, rodo, panelas, ferro de passar roupas, muitas mães preferem não interferir na escolha. Se for da preferência da criança mergulhar no mundo cor-de-rosa, por que não? Mariana Castelo Branco, de 32 anos, empresária, tem duas filhas. Luana, de 15, chegou à adolescência depois de muito subir em árvores, correr, jogar bola, brincar com meninos de espadas. Clara, de 5, brinca de tudo, mas naturalmente prefere as bonecas. “Ela é mais menininha, gosta de princesas. Na sala de aula tem atividades conjuntas, mas ela brinca mais com o grupo das ‘princesas’”, contou.
Para Mariana, o importante é deixar a criança ser ela mesma. “Hoje, a maior parte dos chefs de cozinha é homem, eles ajudam em casa, muita coisa mudou, mas ainda temos um resquício da estrutura da sociedade da época dos nossos avós, quando o homem dirigia, trabalhava fora e as mulheres ficavam em casa. Com brinquedos e brincadeiras é da mesma forma, ainda existe relutância. A ferramenta continua sendo para o menino e o carro feito para elas foi o da Barbie”, disse.
A empresária Daniella Perdigão, de 37, é mãe de Leonardo, de quase 3. Ela diz que não é radical, mas procura comprar brinquedos mais direcionados aos meninos. “Se eu o visse brincando com uma boneca, não iria tomar da mão dele, mas acho também que não tenho que incentivar”, afirmou. Os preferidos dele são os bichos de pelúcia, a Galinha Pintadinha e personagens da Disney. Ao mesmo tempo, tem a casa da Peppa, a porquinha cor-de-rosa que é a sensação da criançada. “São brincadeiras que alguns considerariam de menina, mas não faço objeção.” Por outro lado, o pai, o economista Rafael Damasio, de 34, não lida tão bem com a situação. “O Leo tem curiosidade com os meus sapatos, por exemplo, ele fica muito tempo comigo e pra mim é normal. O pai quando viu não gostou, mas disse com cuidado que sapato de salto é coisa de menina”, contou Daniella.
Homofobia
nos EUA
Na segunda-feira, sites americanos replicaram a foto do norte-americano Michael Morones. Ele tem 11 anos e, segundo contaram os pais, que divulgaram a imagem como forma de protesto, tentou suicídio por sofrer bullying considerado homofóbico na escola. Os pais contaram que o motivo das agressões era o fato de Michael ser fã do desenho My little pony: friendship is magic (Meu pequeno ponei: a amizade é mágica) e ter vários bonecos dos personagens. A história comoveu a Carolina do Norte, nos Estados Unidos, e rodou o mundo pelas redes sociais. Os dubladores do desenho se uniram para arrecadar fundos para o tratamento do garoto e gravaram mensagens de repúdio ao bullying.
nos EUA
Na segunda-feira, sites americanos replicaram a foto do norte-americano Michael Morones. Ele tem 11 anos e, segundo contaram os pais, que divulgaram a imagem como forma de protesto, tentou suicídio por sofrer bullying considerado homofóbico na escola. Os pais contaram que o motivo das agressões era o fato de Michael ser fã do desenho My little pony: friendship is magic (Meu pequeno ponei: a amizade é mágica) e ter vários bonecos dos personagens. A história comoveu a Carolina do Norte, nos Estados Unidos, e rodou o mundo pelas redes sociais. Os dubladores do desenho se uniram para arrecadar fundos para o tratamento do garoto e gravaram mensagens de repúdio ao bullying.
Três perguntas para... Synésio Batista da Costa, presidente da Abrinq
1) Existe o debate de gênero na indústria e expectativa de que os brinquedos sejam mais unificados?
A divisão de gênero não é acentuada no brinquedo e existem alguns valores da sociedade que não queremos quebrar. Não temos nada contra o avanço da sociedade, mas o brinquedo não transforma, ajudamos a construir o cidadão. A gente não quer entrar no debate e não vamos transformar nossos brinquedos em “unissex”. Não queremos desagradar as crianças, vamos fazendo brinquedos cada vez mais lúdicos, que despertam a fantasia, a imaginação.
2) O que se destaca na venda de brinquedos hoje?
Bonecos e bonecas, principalmente para meninas. Representam 40% do mercado. A menina é nossa melhor cliente porque é mais fiel, ela brinca de boneca até ficar moça e continua decorando o quarto. Os jogos de tabuleiro também têm venda significativa, perto de 12%, e vêm crescendo. A razão é que as crianças não querem mais brincar sozinhas e os brasileiros preferem produtos para interagir, não de apertar um botão para que o brinquedo faça tudo.
3) E o pedido das meninas por mais brinquedos de raciocínio, elas são atendidas?
A mãe da menina evita dar a panelinha, o fogãozinho, ela conspira contra de forma positiva. A maioria dos brinquedos fabricados hoje fazem as meninas e meninos pensarem, raciocinarem e aprenderem a tomar decisões. O brinquedo miniaturiza o mundo adulto, que ela vai viver daqui a pouco. Quanto aos meninos, nunca tivemos uma procura por vassoura, rodo, panelas para eles. Se tivesse, chegaria à indústria e ela iria fazer com certeza. Não se brinca por causa do gênero, mas pelo entretenimento.
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