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segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Ruy Castro

folha de são paulo
Quitutes e cosméticos
RIO DE JANEIRO - Em junho, a Câmara Municipal de Juazeiro do Norte (CE) comprou 33 mil esponjas de aço, 4.200 vassouras, 1.400 litros de água sanitária e, modestamente, 312 frascos de óleo de peroba. Esse material se destinou à limpeza da sede da Câmara, que tem 21 vereadores e se reúne duas vezes por semana. Mas não há nada de ilegal em tais compras --os próprios vereadores as autorizaram. Devem achar que é difícil manter a Câmara limpa.
Ainda no Ceará, o governador Cid Gomes (PSB) foi criticado por contratar um serviço de buffet, para abastecer sua residência oficial e seu gabinete, no valor de R$ 3,4 milhões. O buffet, dizem, consistia de caviar, ostras, escargots, salmão, trufas, presunto de Parma e pães "exóticos", arranjos de orquídeas, taças de cristal, 700 garçons, 500 garçonetes e 15 chefs de cozinha. Seus opositores não sabem onde ele acha tempo para gozar de tanto luxo, já que vive a bordo de helicópteros e jatinhos, no Brasil e no exterior.
Cid Gomes é o mesmo que, em janeiro, pagou R$ 650 mil a Ivete Sangalo por um show de inauguração de um hospital em Sobral (CE), sua cidade, e cuja fachada desabou um mês depois. É também um dos políticos mais ativos na campanha para abocanhar parte dos royalties do petróleo devidos ao Rio --e agora se sabe por quê: sem isso, como fazer frente a tantas despesas?
Seu colega de PSB, Wilson Nunes Martins, governador do Piauí, também se propunha a investir R$ 6,3 milhões do dinheiro público no fornecimento de quitutes e cosméticos para seu palácio, incluindo reparadores de pontas de cabelo, gel esfoliante para o rosto, hidratante para o corpo, filtros solares, aparelhos de barbear e xampus. Mas foi aconselhado a retirar o edital. É pena --pelas fotos, parece mesmo precisar desses produtos.
Não se veem muitos manifestantes às portas deles.

sábado, 31 de agosto de 2013

Ruy Castro

folha de são paulo
O sapo de Arubinha
RIO DE JANEIRO - Entro no táxi em Ipanema e o motorista me diz: "Bom dia, Ruy. Acredita que conheci o Arubinha?".
Muitos motoristas do Rio sabem que gosto de futebol e puxam assunto. Mas nunca um deles me veio com algo tão sensacional. Arubinha foi um personagem de Mario Filho, o jornalista que, com seu irmão Nelson Rodrigues, inventou a crônica esportiva. E a maior crônica de Mario falava de um jogador do humilde Andaraí que, em 1937, rogou uma praga contra o Vasco por este ter goleado seu time por 12 a 0.
Por que a praga? Porque o jogo nem era para ter acontecido. A caminho do estádio, numa noite de muita chuva no Rio, o ônibus do Vasco bateu. Jogadores se machucaram e, enquanto eles eram medicados no Pronto Socorro, o Andaraí --que sabia que ia perder e poderia ter vencido por W.O.-- recusou-se a se aproveitar e esperou pelo adversário. Mais de uma hora depois, o Vasco chegou e, mesmo estropiado, meteu 12 a 0.
Trilado o apito final, um jogador do Andaraí --Arubinha-- ajoelhou-se no gramado e, sempre sob chuva, olhou para o céu e disse: "Se existe Deus, o Vasco vai ficar 12 anos sem ser campeão". Passou. E, ano após ano, nada de o Vasco ser campeão. Falou-se que, para garantir, Arubinha ainda enterrara um sapo em São Januário. O fato é que o Vasco, campeão pela última vez em 1934, só voltaria a sê-lo em 1945 --11 anos depois. Moral: se tivesse vencido apenas por 1 a 0, nada lhe teria acontecido.
Nélio, o motorista, me contou que Arubinha era um velho amigo de sua família em Madureira. Ele próprio, ainda garoto, o conhecera nos anos 70 --um senhor baixo, de pernas arqueadas, sexagenário e sempre de mau humor, principalmente pela história do sapo. Morreria uns dez anos depois. Ouvi a história e ganhei o dia --tinha conversado com alguém que conhecera o lendário Arubinha.

    sexta-feira, 30 de agosto de 2013

    Ruy Castro

    folha de são paulo

    A cidade é deles

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    RIO DE JANEIRO - Outro dia, pelo calçadão do Arpoador, vinham dois "black blocs" no rigor dos trinques: coturno, calças, mochila, camiseta e jaqueta pretos, e moletom com touca idem enrolado à cabeça, deixando apenas os olhos de fora --uma espécie de burca militar, como já se disse aqui. Imagino que trouxessem consigo os adereços de mão próprios da categoria: álcool, vinagre, pedras, molotovs e máscaras contra gases --todo cuidado é pouco quando se tem a lei pela frente.
    Mas não havia lei à vista, nem roupa mais imprópria para um "footing" àquela hora --três da tarde, com um sol de veranico sob o qual a dupla suava e parecia apenas exótica, não ameaçadora. Bem faz o Batman, que só sai à noite para trabalhar --sabe que, à luz do dia, sua roupa de morcego tem algo de ridícula. Por sinal, a fantasia dos "black blocs" é a mais próxima que eles acharam para substituir a de Batman --que, tudo indica, usavam até há pouco.
    Nossas cidades não têm opções para se trocar de roupa em público. Donde os dois devem ter saído de casa já paramentados e cruzado no prédio com seus vizinhos e porteiros --que os conhecem desde crianças e sabem muito bem quem são. Bem provável que morassem na Vieira Souto (com os pais, naturalmente) e estivessem a caminho do acampamento armado pelos meninos do "Ocupa Delfim", no Leblon.
    O fato de saírem fantasiados às ruas e com a maior naturalidade sugere que estamos nos habituando aos "black blocs". E por que não? A cidade é deles. A noite cai e a função começa. Do Leblon, seguem para o largo do Machado, onde quebram o que encontram pela frente. Destroem metade de Laranjeiras e, de lá, vão para o Castelo, a Cinelândia ou a Lapa, onde o rastro da depredação continua.
    Hoje, já não passam de 200. Mas são suficientes para subjugar os demais 5.999.800 com que convivem.
    ruy castro
    Ruy Castro, escritor e jornalista, já trabalhou nos jornais e nas revistas mais importantes do Rio e de São Paulo. Considerado um dos maiores biógrafos brasileiros, escreveu sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Escreve às segundas, quartas, sextas e sábados na Página A2 da versão impressa.

    quarta-feira, 28 de agosto de 2013

    Ruy Castro

    folha de são paulo

    Bolas no nariz

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    RIO DE JANEIRO - Se você sempre admirou aquela frase, "Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja" --sim, é o começo de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa--, e se imaginou reescrevendo o livro a partir daí com suas próprias palavras, saiba que isso logo será possível. É só o Brasil adotar a nova plataforma da Amazon, a Kindle Words, pela qual os fãs de um livro terão o direito de imiscuir-se nele e se apoderar de seus personagens, podendo até vender sua "criação", aliás chamada de "fan fiction".
    Para que o autor original ou seus herdeiros não fiquem aborrecidos ou se sintam roubados, a Amazon pensou em tudo. Por um valor xis, o autor ou herdeiros terão "licenciado" o livro para quem quiser meter-lhe o bedelho --e esta será uma maneira de ganhar algum dinheiro com literatura, já que, pelo que a Amazon decidiu, os royalties dos escritores deixarão de existir. No novo mundo digital, o direito de apropriar-se, copiar, reproduzir, parodiar e negociar textos alheios estará assegurado.
    Segundo os ideólogos dessa pirataria, a receita de um escritor não virá mais dos livros que ele vender, mas do que estes lhe renderão em aparições pessoais, palestras, programas de TV, mesas-redondas na Flip e "produtos associados" --por exemplo, o escritor só dará entrevistas usando um boné do Gatorade ou do Fosfosol, sendo pago por isso. Autores capazes de equilibrar bolas no nariz levarão vantagem sobre os gagos, os com língua presa ou qualquer dificuldade para falar em público e que prefeririam ficar em casa, quietinhos, escrevendo.
    Enfim, é o futuro. O mesmo que os compositores de música popular, que não têm saúde ou disposição para fazer shows, já estão vivendo. Se não cantarem para uma plateia ao vivo, não comerão.
    Por via das dúvidas, vou começar a treinar as bolas no nariz.
    ruy castro
    Ruy Castro, escritor e jornalista, já trabalhou nos jornais e nas revistas mais importantes do Rio e de São Paulo. Considerado um dos maiores biógrafos brasileiros, escreveu sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Escreve às segundas, quartas, sextas e sábados na Página A2 da versão impressa.

    segunda-feira, 26 de agosto de 2013

    Escapadas - Ruy Castro

    folha de são paulo
    Escapadas
    RIO DE JANEIRO - A presidente Dilma surpreendeu ao revelar que, outro dia, escapou do Planalto sem ser notada e saiu de moto por Brasília. Ótimo. Significa que não somos apenas nós que já não toleramos as carantonhas dos que a cercam no comando do país. O fato de a presidente não ter carteira de habilitação, não saber dirigir motos e de ser impossível que ela saia sozinha não tem a menor importância.
    Importante é saber que nenhum presidente se contenta com passar o dia assinando documentos sem ler, gritando com ministros ou dando tapas na mesa. Foi citado o caso do presidente João Baptista Figueiredo (1979-1985), que também saía de moto pelas madrugadas de Brasília --talvez para se ver longe, por algumas horas, dos colegas que queriam impedi-lo de devolver o país. Na verdade, a agenda dos presidentes devia prever um horário livre, para que eles pudessem escapar e fazer o que quisessem.
    No passado, isso era possível. Dizem que Getúlio Vargas, em seu período constitucional (1951-1954), saía à noite do Catete e caminhava pela Praia do Flamengo até a rua Paissandu, e voltava. Numa dessas, teria cruzado com Graciliano Ramos, seu ex-preso político, e os dois se cumprimentado. Se aconteceu, foi um belo momento da democracia brasileira.
    Juscelino Kubitschek (1956-1961) também escapava, mas para visitar sua namorada Maria Lucia Pedroso. Jânio Quadros (1961) só não escapava porque não achava a saída do Alvorada, e ficava zanzando às tontas pelo palácio. Já João Goulart (1961-1964) vinha ao Rio de surpresa e fechava a boate Michel, em Copacabana, para ele e seus amigos. E até Castello Branco (1964-1967) ousava aparecer de repente num teatro. Enfim, presidentes e escapadas são quase sinônimos.
    Sem falar nos que, nos últimos 28 anos, escaparam da Lei da Ficha Limpa --porque ela ainda não existia.

    sábado, 24 de agosto de 2013

    Ruy Castro

    folha de são paulo

    Buck vs. Flash

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    RIO DE JANEIRO - Sempre achei que o cidadão precisa tomar partido. Entre duas opções equivalentes, ele deve pesar uma e outra, e decidir por uma delas. Ou não pesar nada, e decidir do mesmo jeito. Isso vale para religião, política ou futebol, e também para quesitos que, para os outros, podem não ser importantes, mas, para ele, são.
    No meu caso, sempre preferi Paris a Nova York, gatos a cachorros, praia a montanha, jiló a quiabo e Nara a Elis. Claro que, em alguns casos, me enganei --somente há pouco, por exemplo, constatei que passei 50 anos torcendo pelo bombom errado. Mas nada supera a sensação de se certificar de que uma escolha feita no passado era a correta.
    Buck Rogers vs. Flash Gordon. Ao contrário de todo mundo da minha turma, sempre gostei mais de Buck Rogers. Descobri-o no caderno de quadrinhos do "Correio da Manhã" nos anos 50 --as cores só faltavam saltar da página-- e, quando conheci Flash Gordon, muito depois, todos aqueles foguetes e asteroides pareciam "déjà-vu". E, se vinham me dizer que Buck era uma imitação de Flash, eu tinha o prazer de informar que era o contrário --Buck foi criado por Philip Nowlan e Dick Calkins em 1928; Flash, por Alex Raymond em 1934.
    Nesta semana, assisti ao seriado "Buck Rogers", de 1939, do mesmo estúdio (Universal), diretor (Ford Beebe) e ator que já vivera Flash Gordon em seriados anteriores: Buster Crabbe. Pois também no cinema Buck supera Flash. Num show de delírio futurista, seus personagens têm raios laser, cinto antigravitacional, VLT (veículo leve sobre trilhos), rastreadores tipo GPS, telefone viva voz, TV interativa, ponte aérea Terra-Saturno, e acham tudo muito natural.
    Mas fulminante mesmo é a cenografia do filme. Comparada à arquitetura e aos cenários Art Déco de "Buck Rogers", até a "Metrópolis" de Fritz Lang parece Brejo Seco.
    ruy castro
    Ruy Castro, escritor e jornalista, já trabalhou nos jornais e nas revistas mais importantes do Rio e de São Paulo. Considerado um dos maiores biógrafos brasileiros, escreveu sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Escreve às segundas, quartas, sextas e sábados na Página A2 da versão impressa.

    sexta-feira, 23 de agosto de 2013

    Oito a menos - Ruy Castro

    Folha de são paulo
    RIO DE JANEIRO - Há um novo formato de disco na praça: o "extended play" --um CD com quatro faixas, em vez das convencionais 12. Não era sem tempo. Até há pouco, quem comprasse um disco por causa de uma música era obrigado a engolir 11 contrapesos, que não lhe davam nenhum prazer e só faziam encarecer o produto. Com a internet, as pessoas ganharam a possibilidade de "baixar" apenas a música que lhes interessava --donde deixaram de comprar discos, e a indústria fonográfica foi para o buraco.
    Nesse sentido, o CD "extended play" é uma boa ideia. Atende ao interesse de quem ainda gosta de discos "físicos" e se resume à faixa que interessa ao cliente, com, no máximo, três contrapesos. Aliás, o "extended play" é uma ideia tão boa que até já a tiveram antes --mais exatamente, em 1949, há 64 anos.
    Era o que então se chamava de "45", porque rodava em 45 rpm, e não em 33 rpm, como os revolucionários álbuns "long-playing" --os LPs--, também recém-lançados pela Columbia. O "45", um mini-LP com quatro faixas, foi inventado pela RCA Victor para fazer frente ao monopólio da Columbia na rotação de 33. E chamou-se "extended play" porque comportava o dobro de música contida no antigo "single" em 78 rpm, com uma só gravação em cada lado.
    O território dos "45" eram as vitrolas automáticas, chamadas "jukebox", onipresentes nos EUA. Daí aquele grande buraco no centro do disco --para comportar a largura do pino de tais máquinas. No Brasil, as "jukeboxes" nunca pegaram e, contornado o problema do monopólio, as gravadoras preferiram lançar os disquinhos em 33 rpm mesmo, chamados de "compactos duplos".
    Os novos "extended plays" em CD custarão mais barato --afinal, suas despesas de produção são menores. Mas a maior vantagem é a de que suas oito músicas a menos farão um enorme bem à música brasileira.

      quarta-feira, 21 de agosto de 2013

      Ruy Castro

      folha de são paulo
      Por sujar a rua
      RIO DE JANEIRO - A Prefeitura do Rio está lançando a Operação Lixo Zero, que vai multar quem emporcalhar a cidade. Em primeira instância, a campanha é educativa. Equipes da Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) estão percorrendo as ruas para flagrar maus cidadãos jogando coisas onde não devem e alertá-los para o que os espera. Em breve, com guardas municipais, policiais militares e 600 fiscais em ação, as multas começarão a chegar para quem tratar a via pública como a casa da sogra.
      Uma guimba jogada ao chão custará R$ 157. Chicletes, latas de refrigerante, garrafas PET, sacos e copos plásticos, idem --por item despejado. Há pessoas que põem na rua ou deixam para trás sofás, pneus, até carros. Um metro cúbico de lixo abandonado custará R$ 375. Acima disso, R$ 3.000. Abordado pela autoridade, o sujismundo terá de informar seu CPF. Se se recusar, será levado ao delega. Num mundo ideal, as pessoas deixarão também de cuspir no chão.
      Imagina-se que, quando essa lei começar para valer, os recordistas de multas serão os cerca de 300 jovens golpistas que, nas últimas semanas, se habituaram a tomar as ruas, pichar monumentos, vandalizar prédios públicos, quebrar orelhões, arrancar postes, apedrejar vitrines, depredar bancos, saquear lojas e, por uma estranha compulsão, destruir lixeiras, jogar o lixo no asfalto e armar barricadas de fogo com ele.
      É verdade que, no seu "bullying" político, digno do fascismo, eles não estão nem aí para a cidade, que é de todos --e que, por algum motivo, parecem querer levar ao colapso.
      Pois, já que a lei não permite prendê-los por vandalismo, saque, formação de quadrilha, desacato à autoridade, resistência à prisão e nem mesmo por ataque aos órgãos públicos, talvez seja possível enquadrá-los por sujar a rua. Não prenderam Al Capone por sonegar impostos?

      segunda-feira, 19 de agosto de 2013

      Ruy Castro

      folha de são paulo
      Crianças brincando
      RIO DE JANEIRO - Uma psicóloga da PM-SP defende que crianças de oito anos podem manusear armas de fogo, "desde que acompanhadas pelos pais". É normal, diz ela, que o filho de um policial tenha curiosidade sobre o instrumento de trabalho de seu pai, "assim como o filho do médico tem sobre o estetoscópio". A recente tragédia em São Paulo, envolvendo o menino Marcelo Pesseghini, 13, suspeito de matar seus pais (ambos, policiais militares), a avó e a tia-avó, e que se matou em seguida, tudo a tiros, não abalou sua convicção.
      Vejamos. É normal que o filho de oito anos de um piloto de aviação tenha curiosidade sobre o instrumento de trabalho do pai --o avião. Isso autoriza o piloto a pôr o filho na cadeira do copiloto e "acompanhá-lo" enquanto ele pousa o aparelho levando 300 passageiros? O filho de um madeireiro, apenas por ser quem é, estará autorizado a brincar com uma motosserra? E o filho de um proctologista estará apto a manipular o instrumento de trabalho de seu pai?
      O que dizer do filho de um funcionário de laboratório de análises encarregado de certos exames? E o filho de um carteiro, vai brincar com minha correspondência? E o de um bombeiro, vai brincar com fogo? E o de um motorista de ambulância? E os de quem trabalha com material tóxico, explosivo ou radiativo --como satisfazer sua curiosidade por aquelas coisas de que os pais falam com tanta naturalidade ao jantar?
      A professora Maria de Lourdes Trassi, da Faculdade de Psicologia da PUC-SP, rebate o argumento da psicóloga da PM, dizendo: "O cirurgião pode até dar o estetoscópio ou a luva [para o filho brincar]. Mas não vai lhe apresentar o bisturi".
      Também acho. E há muitas coisas com que o filho de um PM pode brincar --gás de mostarda, bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha--, sem ter de apelar para armas de fogo.

      sábado, 17 de agosto de 2013

      Ruy Castro

      folha de são paulo
      Poetas e tipógrafos
      RIO DE JANEIRO - Vice-cônsul do Brasil em Barcelona em 1947, o poeta João Cabral de Melo Neto foi a um médico por causa de sua crônica dor de cabeça. Ele lhe receitou exercícios físicos, para "canalizar a tensão". João Cabral seguiu o conselho. Comprou uma prensa manual e passou a produzir à mão, domesticamente, os próprios livros e os dos amigos. E, com tal "ginástica poética", como a chamava, tornou-se essa ave rara e fascinante: um editor artesanal.
      Um livro recém-lançado, "Editores Artesanais Brasileiros" (Autêntica-FBN), de Gisela Creni, conta a história de João Cabral e de outros sonhadores que, desde os anos 50, enriqueceram a cultura brasileira a partir de seu quarto dos fundos ou de um galpão no quintal: Manuel Segalá, no Rio; Geir Campos e Thiago de Mello, em Niterói; Pedro Moacir Maia, em Salvador; Gastão de Holanda, no Recife; e Cleber Teixeira, em Florianópolis.
      O editor artesanal dispõe de uma minitipografia e faz tudo: escolhe a tipologia, compõe o texto, diagrama-o, produz as ilustrações, tira provas, revisa, compra o papel e imprime --em folhas soltas, não costuradas-- 100 ou 200 lindos exemplares de um livrinho que, se não fosse por ele, nunca seria publicado. Daí, distribui-os aos subscritores (amigos que se comprometeram a comprar um exemplar). O resto, dá ao autor. Os livreiros não querem nem saber.
      Foi assim que nasceram, em pequenos livros, poemas de --acredite ou não-- João Cabral, Manuel Bandeira, Drummond, Cecília Meireles, Joaquim Cardozo, Vinicius de Moraes, Lêdo Ivo, Paulo Mendes Campos, Jorge de Lima e até o conto "Com o Vaqueiro Mariano" (1952), de Guimarães Rosa. E de Donne, Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, Mallarmé, Keats, Rilke, Eliot, Lorca, Cummings e outros, traduzidos por amor.
      João Cabral não se curou da dor de cabeça, mas valeu.

        sexta-feira, 16 de agosto de 2013

        Ruy Castro

        folha de são paulo
        Vesículas no céu
        RIO DE JANEIRO - No dia 1º último, o jornalista, professor e psicólogo Ruy Fernando Barboza, em seu blog, despediu-se da vesícula que estava prestes a operar: "Setenta anos juntos, meu amor, sem nenhuma briga nem discussão. Apesar de todas as minhas traições e pecados --picanhas, torresmos, quibes, tartares, dendês e olivas, chantilis, castanhas e abacates a granel. A tudo você, processando, perdoava. Até que um dia --a última quinta-feira-- você teve morte súbita.
        "Meu luto foi dos mais doloridos desta vida. E, como o primeiro médico achou que era gastrite, foi uma semana gemendo, desesperado. (...) Bem, amanhã me torno definitivamente viúvo de você. Nunca vou te esquecer, nem a vida maravilhosa que você me proporcionou. Tomara que, se existir céu, haja um lugar para as vesículas, e sei que, lá, você terá um lugar de destaque, ao lado das do Orson Welles, Hitchcock, Tim Maia, Pavarotti e outras referências culturais de nós dois, minha eterna amada".
        Ruy fechou o computador e internou-se num hospital em Florianópolis, onde estava morando, para uma videolaparoscopia --a retirada da vesícula. A cirurgia só pôde ser feita no dia 8, depois de uma endoscopia para a remoção das pedras que haviam migrado para o canal biliar. Os dois procedimentos foram um sucesso, mas, no dia seguinte, surgiram complicações respiratórias. Tudo foi tentado, mas, no domingo, 11, ele se foi.
        Em São Paulo, sua cidade, Ruy era amado e admirado. Em 1979, resolveu trocar a imprensa pela psicologia e demitiu-se da "Playboy". Fui eu que o sucedi. Daquela Redação, das melhores que conheci, desde então já perdemos Mario Escobar de Andrade, Fernando Pessoa Ferreira, Marco Aurélio Borba, Geraldo Mayrink e Geraldo (Kiko) Galvão Ferraz. E, agora, Ruy.
        Não podia adivinhar que seu adeus à vesícula era também a todos nós.

          quarta-feira, 14 de agosto de 2013

          Ruy Castro

          folha de são paulo
          A literatura de pijama
          RIO DE JANEIRO - Domingos Oliveira, cineasta e dramaturgo que muito admiro, contou na "Ilustríssima" ("A torradeira do poeta", 11/8) sua experiência como assistente de Joaquim Pedro de Andrade na filmagem do curta "O Poeta do Castelo" (1959), sobre Manuel Bandeira. No filme, Bandeira aparece de roupão sobre o pijama, na cozinha de seu humílimo apartamento na avenida Beira-Mar, no Castelo, preparando o café da manhã. Enquanto o vemos fervendo o leite, ouvimo-lo em "off" recitando sua poesia. Depois Bandeira fica só de pijama e volta para a cama. Recosta-se e puxa para perto de si a mesinha com a máquina de escrever.
          O filme é ótimo, mas, se a ideia era mostrar a simplicidade de vida de um grande poeta brasileiro, a cozinha micro, as canequinhas na bateria e o fogão cuja trempe ele tem de soprar para acender já seriam suficientes. Nunca entendi o roupão e o pijama.
          Em outro curta, sobre Nelson Rodrigues, "Fragmentos de Dois Escritores" (1968), de João Bethencourt, vê-se Nelson também batucando à máquina, fumando na janela, tomando sua papinha para a úlcera, e também de pijama, em seu apartamento em Ipanema. E, numa famosa foto, Mario de Andrade posa com um luxuoso "robe de chambre" --dizem que desenhado por ele-- em sua casa em São Paulo. Sob o robe, o pijama.
          Por algum motivo, os escritores brasileiros gostavam de se deixar filmar ou fotografar em trajes íntimos --e pode haver traje mais íntimo do que o pijama, a roupa com que se dorme e se acorda? Mas esse motivo me escapa. E a regra só se aplica a eles --não tenho notícia de que Rachel de Queiroz, Clarice Lispector, nem mesmo Hilda Hilst, tenham sido um dia flagradas de camisola ou "peignoir".
          Se alguém me pedir, vou ter de declinar. Não uso pijama desde criança. A verdadeira intimidade está entre uma linha e outra do que se escreve.

            segunda-feira, 12 de agosto de 2013

            Grandes vendas - Ruy Castro

            folha de são paulo
            RIO DE JANEIRO - As manifestações de rua caíram de 300 mil pessoas para 300, das quais 30 queimam a libido escoiceando portas e 270 gritam slogans de linchamento. As multidões que as apoiavam querem agora apenas voltar para casa em paz, sem perder ainda mais horas no trânsito, ou manter seu comércio aberto, a salvo de pedras, bombas e gases. Mas, mesmo reduzidos aos suspeitos de sempre, os protestos continuam movimentando a economia.
            As papelarias, onde se vendem cartolina e pincel atômico, estão felizes da vida. Seus estoques desses produtos, que ameaçavam encalhar para sempre, estão saindo que nem pão quente. Incrível como dois artigos tão fora de moda --contemporâneos do tinteiro, do mata-borrão e da goma arábica-- estejam servindo para veicular tantas mensagens toscas, pintadas a mão. E isso em plena era do Facebook e do Twitter.
            A venda de vinagre também disparou, para ensopar camisetas que, enroladas aos rostos, neutralizam o gás lacrimogêneo. Idem quanto ao leite de magnésia --os frascos são agora comprados às grosas por jovens de roupa preta.
            Mas ninguém mais feliz que os vidraceiros, chamados a substituir portas de vidro de bancos, escritórios, butiques e outros covis do capitalismo assassino --curiosamente, as lojas do McDonald's têm sido poupadas. Os calceteiros também estão trabalhando em tempo integral, para repor as pedras portuguesas arrancadas pela turma. Os restauradores de monumentos, idem, não têm do que se queixar.
            Os indicadores econômicos acusam ainda uma alta expressiva na procura de escudos de metal, óculos de proteção, tesouras, martelos, marretas, bolas de gude e estilingues. E as máscaras de "Anonymous" continuam saindo, mas seu boom de vendas está previsto para o próximo Carnaval.

            sábado, 10 de agosto de 2013

            Ruy Castro

            folha de são paulo
            Ferrinho de dentista
            RIO DE JANEIRO - No último grande filme do diretor inglês Michael Powell, "A Tortura do Medo", de 1960, Carl Boehm interpreta um psicopata que não se contenta em matar mulheres. Filma-as enquanto as mata (com a perna afiada do tripé de sua câmera à guisa de espada), para ver a expressão de terror em seus rostos, e acopla um espelho à arma para que elas também contemplem o próprio medo. É um "cheek to cheek" macabro.
            Aprendi outro dia com meu dentista --vamos chamá-lo de Américo, embora este seja o seu nome verdadeiro-- que não é preciso ser tão radical para conhecer o medo na sua plenitude. Pode acontecer até na paz de um consultório dentário --e mais ainda se o profissional for, como ele, uma autoridade na mais temida especialidade do ramo: o tratamento de canal.
            Em mais de 30 anos de profissão, Américo calcula ter tratado, em média, cinco canais por dia. A cada ano de 300 dias, isso significou 1.500 canais. Donde, em 30 anos de trabalho, foram 45 mil canais.
            Ou 45 mil rostos a um palmo do seu, petrificados na cadeira à ideia de que, durante horas, terão suas cavidades perfuradas por brocas, canais penetrados por agulhas e as respectivas polpas sugadas e limadas por verrumas. Tudo depois lavado com peróxido de hidrogênio ou hipoclorito de sódio, e preenchido com bastões de guta-percha aparados por ferrinhos incandescentes.
            É difícil acreditar que não dói tanto quanto parece e, se doer, a anestesia resolve. A simples palavra canal faz com que, impotentes, de boca aberta e com o babador de papel ao pescoço, as pessoas assumam um ar de pavor e súplica que constrange tantos dentistas. Américo nunca se deixou constranger. Mas, 30 anos e 45 mil canais depois, decidiu mudar de especialidade. Cuida agora apenas da parte estética --e, com isso, só vê rostos felizes à distância de um palmo.

              sexta-feira, 9 de agosto de 2013

              Ruy Castro - Notícias da semana

              folha de são paulo
              Notícias da semana
              RIO DE JANEIRO - A ciência, na sua eterna busca do homem artificial, anunciou a criação de uma orelha de laboratório. A fórmula consiste em semear células de cartilagem de vacas e carneiros sobre tecidos vivos, ricos em colágeno, dos ditos carneiros e vacas, para que elas cresçam ao redor de um fio de titânio em forma de orelha humana. Com o que, quem sabe, teremos o fim das orelhas de abano. Só falta testar o grau de arrepio da orelha por algo soprado ao seu pé pelo namorado de sua portadora.
              Isso foi em Massachusetts, nos EUA. Em Maastricht, na Holanda, um "pool" de cientistas comemorou a invenção do "frankenburger" --um hambúrguer também artificial, de 140 gramas, feito de 20 mil células-tronco extraídas de uma vaca indefesa, convertidas em fibras e cultivadas por três meses. Levado ao fogo, o hambúrguer androide revelou-se tão incomível quanto um hambúrguer comum, com o que os cientistas se sentiram vitoriosos.
              Parabéns. Só discordo da denominação de "frankenburger". Se se refere ao Frankenstein, para que criar um hambúrguer sintético? Todos os hambúrgueres da praça são como ele, compostos de um coletivo de cadáveres. No caso, de vacas.
              E, em San Francisco (EUA), pesquisadores decretaram a morte do mouse e do teclado. Em breve, quando nos sentarmos a um computador, seus sensores de visão, audição, tato, paladar e olfato nos radiografarão, ouvirão e cheirarão de alto a baixo, e entenderão o que queremos. O que liberará nossas mãos para fins mais nobres, como descascar uma banana, roer as unhas ou coçar as axilas.
              Diante disso, o que me empolgou mesmo foi outra notícia --sobre os primeiros voluntários a se inscrever para uma viagem sem volta a Marte, em 2022. Grande ideia. Talvez em Marte a turma seja mais devagar, sem essa obsessão por mudar o mundo de 15 em 15 minutos.

                quarta-feira, 7 de agosto de 2013

                Ruy Castro

                folha de são paulo
                Reduzido a um clique
                RIO DE JANEIRO - A notícia é alarmante: "Amazon se prepara para vender livros físicos no Brasil". O alarme não se limita à iminente entrada da Amazon no mercado brasileiro de livros --algo que lembrará o passeio de um brontossauro pela Colombo. A ameaça começa pela expressão "livros físicos". É o que, a partir de agora, o diferenciará dos livros digitais.
                Pelos últimos mil anos, dos manuscritos aos incunábulos e aos impressos a laser, os livros têm sido chamados de livros. Nunca precisaram de adjetivos para distingui-los dos astrolábios, das guilhotinas ou das cenouras. Quando se dizia "livro", todos entendiam um objeto de peso e volume, composto de folhas encadernadas, protegidas por papelão ou couro, nas quais se gravavam a tinta palavras ou imagens.
                Há 200 anos, os livros deixaram de ser privilégio das bibliotecas públicas ou particulares e passaram a ser vendidos em lojas especializadas, chamadas livrarias. Desde sempre, as livrarias se caracterizaram por estantes altas, vendedores atenciosos, uma atmosfera de paz e a ocasional presença de um gato. Foi nelas que leitores e escritores aprenderam a se encontrar e trocar ideias, gerando uma emulação com a qual a cultura teve muito a ganhar.
                A Amazon dispensa tudo isso. Ela vende livros "físicos", mas a partir de um endereço imaterial --nada físico--, acessível apenas pela internet. Dispensa as livrarias. Se você se interessar por um livro (certamente recomendado por uma lista de best-sellers), basta o número do seu cartão de crédito e um clique. Em dois dias, ele estará em suas mãos --e a um preço mais em conta, porque a Amazon não tem gastos com aluguel, escritório, luz, funcionários humanos e nem mesmo a ração do gato.
                Com sorte, os livros continuarão "físicos". Mas os leitores correm o risco de ser reduzidos a um número de cartão de crédito e um clique.

                  segunda-feira, 5 de agosto de 2013

                  Por trás das burcas - Ruy Castro

                  folha de são paulo
                  Por trás das burcas
                  RIO DE JANEIRO - Há três meses, quando me falaram dos "black blocs", achei que eram uma nova versão do extinto grupo New Kids on the Block. Hoje, ninguém faria essa confusão. De tanto vê-los na TV ou nos jornais, atacando vidraças, carros e orelhões, ou atirando bombas na polícia, sabemos que são um grupo anarquista. E, como tal, dedicado a combater o Estado, a autoridade, a hierarquia e qualquer ideia de ordem.
                  Apesar disso, reina entre eles uma certa ordem: todos usam máscara e se vestem de preto de alto a baixo. É normal, não querem ser identificados. O que leva à pergunta: por trás do aparato quase militar com que se cobrem, quem são? É um fenômeno ainda a ser estudado.
                  Eles parecem jovens, mas quão jovens? Estarão na faixa dos 20 ou dos 30 anos? Dão-se bem com os pais? Estes sabem de suas atividades? Ou nem desconfiam, já que seus filhos são bons meninos no lar e só assumem suas identidades secretas na rua? Ainda moram com a família ou já saíram de casa? Se for este o caso, têm emprego fixo ou algum rendimento? Sustentam-se sozinhos? Estudam? Fazem os trabalhos, prestam exames, passam de ano? Falam de política com os professores?
                  Em quem votaram nas últimas eleições? E, se votaram, ainda se lembram em quem votaram? Bebem, fumam, usam alguma droga? Têm namorada ou apenas "ficam" com as amigas? Vão ao cinema? Jogam pelada na praia? Gostam de futebol, torcem por algum time, vão aos estádios? E, nestes, são tão incisivos quanto nas ruas? Quais são seus anarquistas favoritos? O jornalista inglês William Godwin (1756-1836)? O filósofo francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865)? O ativista italiano Errico Malatesta (1853-1932)?
                  O anarquismo clássico pode ser de extrema esquerda ou de extrema direita. Qual deles estará por trás das burcas com que os nossos anarquistas se vestem?

                    sábado, 3 de agosto de 2013

                    Ruy Castro

                    folha de são paulo
                    Palavra de sambista
                    RIO DE JANEIRO - Um dos melhores cartuns já criados no Brasil --por Jaguar, claro-- mostra Cristo na cruz, falando para uma interlocutora invisível: "Hoje não dá, Madalena. Estou pregado". A ideia de alguém impossibilitado de fazer algo importante por algum compromisso anterior pode ser dramática.
                    Ou cômica, como na resposta do violonista Baden Powell, em 1965, ao convite da embaixada americana no Rio a se apresentar para o presidente Lyndon Johnson, na Casa Branca, por aqueles dias: "Não posso. Nesta quinta, estreio no Zum-Zum" --sendo o Zum-Zum uma microboate de Copacabana, frequentada apenas por seus amigos.
                    Ou trágica, como na entrega do Oscar em 1955, a que Judy Garland não poderia comparecer porque sua filha nasceria naquela noite --e Judy era favorita a melhor atriz por "Nasce uma Estrela". Assim, as TVs de Hollywood acamparam em seu quarto no hospital para captar o momento em que ela seria anunciada como vencedora. Mas quem ganhou foi Grace Kelly, por "Amar É Sofrer", e as câmeras se evaporaram em dois minutos.
                    No sábado último, o sambista carioca Monarco seria uma das estrelas da roda de samba de Moacyr Luz no botequim paulistano Pirajá, para o lançamento de um belo CD inédito, "A Cozinha do Samba", gravado por eles, lá mesmo, há dez anos. De última hora, Monarco soube que, de manhã, naquele dia, seria uma das personalidades abençoadas pelo papa Francisco no Theatro Municipal.
                    Monarco poderia ter feito como Baden: "Perdão, Santidade, mas tenho show à tarde no Pirajá, em Sampa". Ou ter trocado o samba pelo papa. Mas os tempos são outros. Monarco se embecou, deixou-se abençoar pelo papa no Municipal, correu para a ponte aérea e adentrou o Pirajá com seu terno branco, chapéu de aba curtinha e voz inconfundível. Ele prometera. E palavra de sambista é assim --dispensa até o fio de bigode.

                    sexta-feira, 2 de agosto de 2013

                    Ruy Castro

                    folha de são paulo
                    A fila não anda
                    RIO DE JANEIRO - Mick Jagger, líder dos Rolling Stones, fez 70 anos. Quando eles surgiram, em 1962 ou 63, o Reino Unido ainda estava na idade do gelo. O romance "O Amante de Lady Chatterley", de D. H. Lawrence, de 1928, continuava proibido. A pílula anticoncepcional já existia, mas ainda não chegara às farmácias. Homossexualismo era crime. E o "hit parade" inglês tocava xaropes como "Oh! Carol", com Neil Sedaka; "What Now My Love", com Gilbert Bécaud; e "I Can't Stop Loving You", com Ray Charles. Os londrinos tropeçavam em mamutes mortos nas calçadas.
                    Para os jovens que os ouviam pela primeira vez, os Stones eram um grito de rebeldia contra tudo o que seus pais --os coroas-- representavam. E não era só a música ou o barulho, mas os penteados, as roupas, o comportamento, a "atitude". Comparados aos Stones, os Beatles, que tinham nascido pouco antes, eram rapazes de família, com seus terninhos sem gola, gravatas com prendedor e botinhas engraxadas. Os Stones é que eram o bicho, temi- dos pelos mais velhos.
                    Mas a fila anda. Uma fã de primeira hora de Mick Jagger teria, digamos, 20 anos em 1963. Isso foi há 50 anos, com o que, hoje, ela terá 70. A filha dessa mulher, nascida naquele mesmo ano, estará com 50 e já lhe terá dado uma neta. Esta neta, nascida em 1983, acaba de fazer 30 e, por sua vez, também tem uma filha, que está agora com 10 anos. Donde esta última menina é bisneta daquela fã original de Mick Jagger. Para ele, deve ser chocante pensar que suas primeiras fãs, as gostosuras de minissaia e longos cabelos escorridos que se atiravam aos seus pés, transformaram-se em... bisavós.
                    Ou não. O próprio Mick, aos 70, também deve usar óculos de leitura, fazer exame de próstata e controlar o ácido úrico. Mas continua a se ver e a ser visto como sinônimo de rebeldia.
                    Pensando bem, a fila não anda.

                      quarta-feira, 31 de julho de 2013

                      Sim, havia - Ruy Castro

                      folha de são paulo
                      Sim, havia
                      RIO DE JANEIRO - Os menores de 30 anos podem não acreditar, mas já houve tempo em que "sexo oral" tanto podia significar a clássica modalidade olímpica como infindáveis discussões entre homens e mulheres sobre sexo, antes ou depois do dito --às vezes, durante. Os homens, procurando razões profundas para possíveis disfunções. As mulheres, atormentadas em busca do orgasmo que insistia em escapar-lhes.
                      Uma dupla de pesquisadores americanos, o dr. William H. Masters e sua assistente Virginia Johnson, foi decisiva para limpar a área e estabelecer novos conceitos. Suas descobertas de laboratório, trabalhando com centenas de voluntários, levaram ao livro "A Conduta Sexual Humana", publicado em 1966 nos EUA e vulgarizado em inúmeras publicações populares dos anos 70. No Brasil, revistas como "Playboy" e "Nova" tornaram certas expressões, como "ejaculação precoce", "orgasmo clitoridiano" e outras, tão corriqueiras quanto a quantidade de ovos numa receita de pudim.
                      Masters e Johnson eram sérios e deram um passo adiante em relação ao "Relatório Kinsey", de 1948. Graças ao casal, os terapeutas se convenceram de que certas impotências podiam ser provocadas por uma prosaica veia entupida, e não porque o sujeito quisesse matar a avó; e de que não havia diferença fisiológica entre os orgasmos via vagina e clitóris, o que tornava sem sentido a ideia de que só o primeiro seria um orgasmo "maduro", como queria Freud.
                      Infelizmente, Masters e Johnson resultaram também em picaretas como Shere Hite, autora do "Relatório Hite", para quem a descoberta do clitóris pelas mulheres reduzia o homem a um apêndice inútil. Eu próprio, na época, ouvi isso, no Rio, de lindas feministas --sim, havia.
                      Masters morreu em 2001, aos 86 anos; Johnson, na semana passada, aos 88. Apesar de tudo, rapazes e moças fomos mais felizes por causa deles.