Frei Betto
Estado de Minas - 31/10/2012
A Justiça determinou a retirada de 170 índios guarani-caiová das terras em que habitam em Mato Grosso do Sul. Em carta à opinião pública, eles apelam: “Pedimos ao governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo, mas decretar nossa morte coletiva e nos enterrar todos aqui. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos, mesmo, em pouco tempo”.
A morte precoce, induzida – o que nós, caras-pálidas, chamamos de suicídio –, é recurso frequente adotado pelos guaranis-caiovás para resistirem frente às ameaças que sofrem. Preferem morrer a se degradar. Nos últimos 20 anos, quase mil indígenas, a maioria jovens, puseram fim às suas vidas, em protesto às pressões de empresas e fazendeiros que cobiçam suas terras.
A carta dos guarani-caiovás foi divulgada depois de a Justiça Federal determinar a retirada de 30 famílias indígenas da aldeia Passo Piraju, em Mato Grosso do Sul. A área é disputada por índios e fazendeiros. Em 2002, acordo mediado pelo Ministério Público Federal, em Dourados, destinou aos índios 40 hectares ocupados por uma fazenda. O suposto proprietário recorreu à Justiça.
Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), há que saber interpretar a palavra dos índios: “Eles falam em morte coletiva (o que é diferente de suicídio coletivo) no contexto da luta pela terra, ou seja, se a Justiça e os pistoleiros contratados pelos fazendeiros insistirem em tirá-los de suas terras tradicionais, estão dispostos a morrer todos nela, sem jamais abandoná-las”, diz a nota.
Dados do Cimi indicam que, entre 2003 e 2011, foram assassinados, no Brasil, 503 índios. Mais da metade – 279 – pertence à etnia Guarani-Caiowá. Em protesto, em 19 de outubro, em Brasília, 5 mil cruzes foram fincadas no gramado da Esplanada dos Ministérios, simbolizando os índios mortos e ameaçados. São comprovados os assassinatos de membros dessa etnia por pistoleiros a serviço de fazendeiros da região. Junto ao Rio Hovy, dois índios foram mortos recentemente por espancamentos e torturas.
A Constituição abriga o princípio da diversidade e da alteridade, e consagra o direito congênito dos índios às terras habitadas tradicionalmente por eles. Essas terras deveriam ter sido demarcadas até 1993. Mas, infelizmente, a Justiça brasileira é extremamente morosa quando se trata dos direitos dos pobres e excluídos. Um quarto de século após a aprovação da carta constitucional, em 1988, as terras dos guaranis ainda não foram demarcadas, o que favorece a invasão de grileiros, posseiros e agentes do agronegócio.
Participei, no governo Lula, de toda a polêmica em torno da demarcação da Raposa Serra do Sol. Graças à decisão presidencial e à sentença do Supremo Tribunal Federal (STF), os fazendeiros invasores foram retirados daquela reserva indígena. No caso dos guaranis-caiovás não se vê, por enquanto, a mesma firmeza do poder público. Até a Advocacia Geral da União (AGU), responsável pela salvaguarda dos povos indígenas – pois eles são tutelados pela União – chegou a editar portaria que, na prática, reduz a efetivação de vários direitos.
O argumento dos inimigos de nossos povos originários é de que suas terras poderiam ser economicamente produtivas. Atrás desse argumento perdura a ideia de que índios são pessoas inúteis, descartáveis, e que o interesse do lucro do agronegócio deve estar acima da sobrevivência e da cultura desses nossos ancestrais.
Os índios não são estrangeiros nas terras do Brasil. Ao chegar aqui, os colonizadores portugueses – equivocamente qualificados nos livros de história como “descobridores” – se depararam com mais de 5 milhões de indígenas, que dominavam centenas de idiomas distintos. A maioria foi vítima de um genocídio implacável, restando hoje apenas, 817 mil indígenas, dos quais 480 mil aldeados, divididos em 227 povos que dominam 180 idiomas diferentes e ocupam 13% do território brasileiro.
Não adianta o governo brasileiro assinar documentos em prol dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável se isso não se traduzir em gestos concretos para a preservação dos direitos dos povos indígenas e de nosso meio ambiente. Bem fez a presidente Dilma ao efetuar cortes no projeto do novo Código Florestal aprovado pelo Congresso. Entre o agrado a políticos e os interesses da nação e a preservação ambiental, a presidente não relutou em descartar privilégios e abraçar direitos coletivos.
Resta agora demonstrar a mesma firmeza na defesa dos direitos desses povos que constituem a nossa raiz e que marcam predominantemente o DNA do brasileiro, como comprovou o Projeto Genoma Humano.
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