Gracie Santos
Estado de Minas - 10/11/2012
Lançado em 1976, Dona flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto, teve público de 10,7 milhões de pessoas |
Uma câmera na mão, uma ideia na cabeça e dinheiro público para bancar a criação. Assim, com recursos garantidos desde a implantação das normas de dedução fiscal nos anos 1990, o filme nacional se pagaria antes mesmo de estrear, o que tornaria o público espécie de “bônus”. Com ou sem ele, o cineasta não terá prejuízo, o que alimentaria produção autoral sem a preocupação de atrair espectadores. Essa colocação das mais polêmicas está entre as reflexões do livro Cinema brasileiro no século 21 (Summus Editorial), de Franthiesco Ballerini. Durante dois anos, o jornalista, professor e crítico investigou a cinematografia nacional. Mais do que se possa concluir ou refletir a partir das questões postas – e respondidas por profissionais do meio (51 entrevistados) –, incomoda perceber que o cinema nacional tem longo caminho a percorrer antes de enterrar de vez o preconceito (ou resistência) do brasileiro à produção de seu próprio país.
Independentemente das polêmicas levantadas, o livro de Franthiesco Ballerini faz importante passeio pela história do cinema nacional, guiado por especialistas entrevistados, pesquisas e opiniões. Tudo colocado em texto simples e instigante, ao longo de 12 capítulos. “Bônus” para o leitor (pesquisador ou curioso) são as extensas relações de filmes com mais de 1 milhão de espectadores a partir dos anos 1970, e também daqueles que atingiram de 500 mil a 1 milhão, além de anexo com os longas brasileiros lançados comercialmente entre 2000 e 2009. O autor informa valores totais autorizados para captação, valores captados, bilheteria e público. Trabalho minucioso, contextualizado historicamente e embasado em reportagens (com posições muitas vezes conflitantes).
No prefácio em forma de depoimento, o crítico, cineasta e escritor Jean Claude Bernardet explicita problemas que considera criados pelo fato de o filme já estar pago quando concluído. “Eliminar as leis seria grande besteira, pois tudo desapareceria”, defende. Mas tanto ele quanto o autor discorrem sobre a necessidade de a legislação ser revista. Para Bernardet, deveriam “considerar sistema mais complexo, que envolva capitais de risco na produção, nas empresas e nas fases de transição da produção cinematográfica”. Para o especialista, a esperança vem dos fundos setoriais da Ancine, entre outras opções.
Bernardet acredita que a estrutura das leis de financiamento “tampouco favorece um intercâmbio entre a produção e o público, ou se produz pensando no público.” E afirma: “ Se o filme se paga com os recursos advindos da própria produção, via leis de incentivo, o público não é uma necessidade, ele é um bônus. Isso viciou muito a relação entre as duas partes, entre a produção e o público. (...) Não pensar no público é fruto de toda uma concepção desenvolvida pelos intelectuais sobre o cinema brasileiro desde os anos 1960, referente a um cinema totalmente centrado em um diretor, na ideia de autor, cinema de arte”.
Para Franthiesco Ballerini, “a lei não é incentivo para se fazer cinema com intuito de formação de um público maior”. Deve-se pensar numa fatia do cinema para o público mais fiel, afirma. “Nosso market share fica sempre abaixo de 10%”, lembra, sugerindo a criação de critérios para definir a obtenção de recursos, por meio da lei, vinculada à bilheteria do projeto anterior beneficiado.
“Se um cineasta lança um filme e faz 50% ou menos de bilheteria do custo do filme, no próximo projeto ele vai poder captar menos dinheiro que da primeira vez. E, se ele continuar com esse grau de bilheteria, o índice deve diminuir. Você vai dizer que isso é dirigismo cultural. Mas ele está usando dinheiro do contribuinte para fazer algo que não é necessidade básica. Isso é muito diferente de estrada e rodovia, o mínimo que ele precisa é pensar em fazer um cinema para o público.”
“Nada impede o cineasta de fazer obra absolutamente hermética, incompreensível, mas com recursos próprios”, alfineta Ballerini, acrescentando que diretores consagrados, por causa de seus nomes, “captam recursos, mas nunca tiveram portfólio de filmes que se pagaram”. O especialista acredita que há “um discurso pseudodemocrático sobre o assunto, de quem não leva em consideração que o dinheiro gasto é recurso público. Cinema não é necessidade básica, tem que haver comprometimento com a formação de plateia. É bem diferente de você usar dinheiro público para dar casa própria, alimentação, pois não precisa esperar retorno”. O Brasil vive uma esquizofrenia, aponta o autor. “Quando você vai financiar uma casa, tem que pagar as prestações à Caixa Econômica Federal”, lembra.
Levantamentos de Ballerini indicam que, das quase 70 produções brasileiras/ano, em média, provavelmente menos de 10% têm capacidade de atingir o público e aumentar o market share do cinema nacional, “fomentando, assim, o hábito de ir ao cinema para assistir às produções feitas internamente, o que é crucial para a formação de uma indústria menos dependente de recursos do Estado”. Ele avalia que praticamente todos os filmes brasileiros usam recursos públicos durante o processo de produção. E diz: “Só em 2010, foram captados mais de R$ 154 milhões para a realização de produções audiovisuais. É muito dinheiro, especialmente levando-se em conta que tal investimento não retorna para o governo nem para o contribuinte”.
Futuro
Qual seria, então, a melhor diretriz para o cinema brasileiro? “Hoje, estamos no bom caminho, o da heterogeneidade, mas é preciso pensar um pouco mais na formação de plateia, dar menor grau de importância a filmes que não têm potencial de público. Se Daniel Filho tem grande chance de fazer bilheteria, você não pode dar a mesma oportunidade a Júlio Bressane. Daniel tem mais fôlego, está pensando na formação de público. Bressane não. Você vai dizer que é aberração Xuxa e Didi dependerem de dinheiro público, mas eles têm público”, responde.
O jornalista acha que todo o esforço, “que é a conclusão do livro, que não é só minha e que pode incomodar alguns artistas, é que temos que buscar melhores estratégias para sermos cada vez mais vistos por nós mesmos, para gerarmos mais empregos, criarmos o hábito de ver filmes internos e também um ciclo rico de produção artística nacional, que às vezes desaparece. É muito melhor gostarmos de Se eu fosse você que de Harry Potter 7”.
Mercado simbólico
Formar público não é tarefa simples. Certamente, não pode ser algo contabilizado em números, “grau” de bilheteria ou market share. É trabalho de formiguinha, construído anos a fio. Cinema é arte e negócio – como tal, deve gerar empregos, dar lucro, destinar produtos competitivos aos mercados interno e externo. Mas o cinema, como a literatura, o teatro e as artes visuais, pode ser analisado sob outra ótica: a do mercado de bens simbólicos, tema muito bem explorado pelo filósofo e sociólogo francês Pierre Bordieu (1930-2002) em As regras da arte – Gênese e estrutura do campo literário (Companhia das Letras).
No capítulo “Mercado dos bens simbólicos”, Bordieu diz: “Um romance que não faz sucesso tem uma duração de vida (a curto prazo) que pode ser inferior a três semanas. Em caso de sucesso a curto prazo, uma vez subtraídos os gastos de fabricação, os direitos autorais e as despesas de difusão, restam cerca de 20% do preço de venda ao editor, que deve amortizar os não vendidos, financiar seu estoque, pagar seus gastos gerais e seus impostos. Mas, quando um livro prolonga sua carreira além do primeiro ano e entra no ‘acervo’, constitui uma ‘reserva’ financeira que fornece as bases de uma previsão e de uma ‘política’ de investimentos a longo prazo: tendo a primeira edição amortizado os gastos fixos, o livro pode ser reimpresso com preços de custo consideravelmente reduzidos e assegura, assim, recebimentos regulares (recebimentos diretos e também direitos anexos, traduções, edições de bolso, vendas para a televisão ou para o cinema), o que permite financiar investimentos mais ou menos arriscados de forma a garantir, por sua vez, a prazo, o aumento do ‘acervo’”.
Por esse viés ou abordagem do mercado simbólico, não seria impossível dizer, por exemplo, que filmes de Júlio Bressane podem não ter sucesso de bilheteria, mas a longo prazo o diretor vem construindo cinematografia que leva sua obra a cineclubes, escolas, festivais, palestras e a uma infinidade de situações não mensuráveis. É inegável: o diretor sempre amplia o seu “acervo”. Nesses locais por onde trafega, independentemente da baixa bilheteria computada, Bressane amplia seu score e a vida “útil” de sua obra, além de contribuir para formar tanto público de cinema quanto cineastas.
Cidadão Kane (1941, Orson Welles) não foi o campeão de bilheteria de sua época, mas certamente soma uma das maiores arrecadações da história do cinema mundial se computadas suas variadas exibições até hoje. O clássico contribuiu, contribui e continuará contribuindo para a formação de público e de profissionais de cinema.
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