Estado de Minas 10/11/2012
Durante as eleições municipais foi comum acompanhar um jogo de empurra entre as instâncias de governo. Candidatos a prefeito faziam questão de identificar os limites de suas ações em várias áreas da administração pública, em razão de competências definidas pela lei e da carência de recursos, concentrados na União e nos estados. Mais que uma argumentação racional ou crítica acerca da distribuição da arrecadação, tratava-se quase sempre de uma questão política ou, mais propriamente, eleitoral.
O primeiro grande problema que ganhou força com o fim das eleições foi o da segurança pública, que passou intocado dos debates eleitorais, exatamente pela lógica que defende que se trata de tema fora da alçada do poder municipal. Nos planos de governo apresentados durante as campanhas, a questão era tratada muito mais na perspectiva das consequências de decisões que emanavam de outras áreas e esferas do que de seu enfrentamento direto e determinado.
Ou seja, ou a violência é vista como o resultado do fracasso de outras dimensões (sobretudo da economia) ou como uma questão que tange apenas aos governos dos estados e à União. Essa operação de fuga do real se deu mesmo quando se tratava de assunto que mobilizava de maneira destacada o cidadão, como apontavam as pesquisas de temas mais relevantes, nas quais a violência sempre marcou lugar de destaque. O medo nosso do dia a dia se tornou um problema tão grave que o melhor foi fugir dele.
No entanto, o que se mostrou mais grave com a situação de São Paulo, com a explosão de atentados e homicídios ligados ao crime organizado, foi que as autoridades, no primeiro momento, parecem ter cedido ao mesmo artifício de escapar do problema por razões ideológicas, acusando-se uns aos outros, como se viu no ocorrido entre o governo de São Paulo e o Ministério da Justiça. Em vez de ação conjunta, como deveria ter sido desde o primeiro momento, o que se viu foram acusações animadas pela orientação política diferente dos dois níveis de governo. Enquanto governador e ministro trocavam farpas, cadáveres se acumulavam na Medicina Legal e a sensação de insegurança ganhava as ruas. O mesmo se viu em Belo Horizonte, com uma onda de crimes contra a vida e o patrimônio que marcou a cidade e se tornou uma das questões mais presentes na vida do cidadão.
A questão da segurança pública é complexa, todos sabem, envolve várias dimensões e cobra ações que alcançam toda a sociedade. Mesmo assim, a compreensão do que é próprio da área foi, até poucas décadas atrás, deixado de lado em nome de teorias que, mesmo bem intencionadas, não davam conta da abrangência do problema. Durante muito tempo a violência era considerada uma decorrência de problemas que vinham de outras áreas, notadamente da economia e da política.
No campo da economia, tratava-se de apostar que o crescimento levaria à melhoria das condições de vida e, com isso, ao declínio da criminalidade. No âmbito da política, a crença era a de que superado o regime autoritário, as instituições democráticas seriam capazes de dar conta do mais visível dos equívocos, concentrados na ausência de uma cultura dos direitos humanos e na impunidade frente à violência do próprio Estado. A atual situação da violência no Brasil se insere num quadro aparentemente paradoxal, já que as expectativas de mudança no âmbito mais gobal foram alcançadas: a melhoria dos índices de qualidade de vida é uma realidade e a democracia já está consolidada há mais de duas décadas.
As razões do crescimento da violência urbana e sua estruturação corporativa precisam por isso ser compreendidas por outros olhares e cobram uma reação mais informada e responsável. Não cabem mais nem os mitos, como o que associa criminalidade e pobreza (na verdade, o crime segue o caminho da riqueza), nem a crença de que ações, ainda que meritórias, concentradas apenas na faixa dos programas assistenciais, darão conta da abrangência do problema. É ainda perigoso, em razão da grande força emocional que toma a sociedade nesses momentos de confronto, que se abandone o esforço de defesa dos direitos humanos, como se o caso, agora, fosse de uma guerra moral entre inimigos de morte.
Há, para tornar ainda mais complexa a situação da segurança pública no Brasil, vários elementos que acompanham a transformação do Estado nos últimos anos: a explosão do tráfico de drogas com a participação da classe média como um dos financiadores das ações criminosas; o aumento dos conflitos nas relações interpessoais; a carência e o desmantelamento de mecanismos de controle no âmbito das famílias e das comunidades; a falência operativa das instâncias de julgamento; a excessiva individualização das ações de punição e coerção, muito presas às tradições liberais que tendem a desconsiderar a dimensão social em nome da responsabilização do criminoso como pessoa; a permeabilidade de parte das organizações policiais e judiciais à corrupção; e, o que talvez seja o mais grave, a impunidade real e a sensação de que a lei não vale para todos.
Política e corrupção A chegada do crime organizado se deu num ambiente que conjuga vários desses elementos com a criação de vácuo em torno das representações sociais da segurança por parte da sociedade. O cidadão por vezes reconhece a lei e seus agentes, apoiando ações de combate à violência e as políticas de direitos humanos; em outros momentos desconfia da universalidade dos valores defendidos pelas mesmas leis e se sente refém de um Estado feito de privilégios e exceções. Além disso, a recente ligação entre o mercado do crime e a política (com o trânsito desabrido e altivo de Carlinhos Cachoeira entre parlamentares e agentes públicos encarregados de licitações) reforça ainda mais a descrença do cidadão em torno dos valores que sustentam as políticas públicas de segurança.
Um grande esforço, mas ainda incipiente, tem sido feito para dar à área da segurança um aparato de saber e perspectiva de ação mais robusta e efetiva. A criminologia, que no Brasil parece ser apenas tema de seriado de televisão, é uma disciplina que só agora parece mostrar no país sua eficácia. Ainda pouco estudada, no entanto, já se tornou referencial para desenho de políticas públicas em vários estados e municípios, avançando de uma base sociológica estrita para um conjunto de saberes que vêm de várias áreas para compor estratégias de conhecimento e atuação mais informadas e responsáveis. Nesse aspecto, por exemplo, já se tornou hegemônico o empenho em valorizar a prevenção, conhecer os diferentes estágios de criminalidade, atuar nas causas, defender os direitos humanos, trabalhar com o risco de vitimização, profissionalizar as forças policiais, sem deixar de lado o trabalho de combate explícito às práticas criminosas.
As diferentes etapas da organização das atividades criminosas, como indica Cláudio Beato no livro Crime e cidades (Editora UFMG), cobram formas distintas de combate. “Nos estágios iniciais, as intervenções sociais seriam suficientes e a um custo relativamente baixo. Quando se perde essa oportunidade, e passa-se ao segundo estágio, tem-se que agregar um custo a mais, relativo ao estabelecimento de condições que, na verdade, nunca foram propiciadas – a provisão de segurança e Justiça – em comunidades deterioradas social e economicamente.”
O bate-cabeça em São Paulo é típico da irresponsabilidade que tem guiado a gestão pública quando se submete a interesses e calendários eleitorais. Tratar os graves problemas da área como uma disputa partidária é um elemento a mais na conturbação de um setor que já tem problemas internos em demasia. A ação coordenada, inteligente, orientada para a paz social, é uma exigência de ofício dada aos ocupantes dos cargos públicos. Se eles não se entendem no comando, a mensagem de anarquia ganha os estágios seguintes da responsabilização pelas ações no setor.
O que se vê, hoje, na segurança pública, pode ser um paradigma para outros setores da administração pública, como saúde, educação, habitação e assistência social. A eleição já passou. Os problemas continuam.
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