sábado, 10 de novembro de 2012

ENTREVISTA/DÊNIS DE MORAES » O outro Graça - Severino Francisco‏

Biógrafo revela que Graciliano Ramos esteve frente a frente com Getúlio Vargas depois de sair da prisão. O famoso "ranzinza" era solidário e bem-humorado 

Severino Francisco
Publicação: 10/11/2012 04:00

O escritor Graciliano Ramos com o filho, o também escritor Ricardo Ramos
Graciliano Ramos sempre se esquivou de efusões sentimentais e da autopromoção. Na passagem dos 120 anos do nascimento do autor do romance Vidas secas, o jornalista e professor Dênis de Moraes relança uma biografia que se tornou clássica: O velho Graça (Editora Boitempo). ênis joga luz sobre as múltiplas facetas de Graciliano sem incorrer no mero panegírico. Expõe contradições, dilemas e dramas do cabra alagoano. Criança sensível que sofreu com apelidos estigmatizadores, adolescente em rebelião contra a ordem estabelecida, adulto desconfiado e severo com os outros e, principalmente, consigo mesmo, Graciliano revelou sua integridade em diversos episódios que beiram o absurdo. Prefeito de Palmeira dos Índios, ele não teve dúvida em multar o pai por soltar cachorros nas ruas. Mas Dênis trata de matizar a imagem de um Graciliano intransigente, implacável e pessimista, capaz de responder a quem lhe dirigia um trival bom-dia: “Você acha?”.


O que a reedição de O velho Graça traz de novidade?

Há dois acréscimos que merecem relevo. O primeiro revela o único encontro havido entre Graciliano e Getúlio Vargas, durante o Estado Novo. O Rio de Janeiro era uma cidade tranquila e segura, as pessoas tinham o hábito de sair depois do jantar. De vez em quando, Vargas fazia isso no quarteirão do Palácio do Catete, sozinho, sem seguranças. Graciliano morava numa pensão da Rua Correa Dutra, a poucas quadras do palácio. Numa noite, os dois quase se esbarraram. Vargas reconheceu o escritor e o cumprimentou de passagem: “Boa noite”. Graciliano, que também notara a aproximação do presidente, passou por ele sem retribuir a saudação. O silêncio revelava a mágoa que o escritor não escondia pelo governo de Vargas, que o prendera, sem processo ou culpa formada, durante 10 meses e 10 dias, entre 1935 e 1936, em meio à escalada repressiva que desembocaria na ditadura do Estado Novo. O segundo acréscimo relevante foi a carta que Graciliano chegou a escrever ao próprio Vargas, em 1938, e jamais enviou. Um desabafo íntimo sobre as vicissitudes que enfrentara no período da prisão. O tom era respeitoso, ainda que com tiradas irônicas, como, por exemplo, se referir a Vargas como “meu colega de profissão”. Ora, Getúlio nunca foi escritor e chegaria à Academia Brasileira de Letras com um único livro, de discursos... Não me parece casual que Graciliano tenha escolhido Vargas como destinatário: era o chefe do regime que o encarcerara. Tratava-se de um ajuste de contas. 

Algumas vezes, o biógrafo se depara com um artista que não é grande personagem. Isso se dá no caso de Graciliano?
Graciliano viveu 60 anos, que, em verdade, foram 120, tantas as circunstâncias existenciais, profissionais, literárias, políticas e sociais em que se envolveu. Penso que, quanto mais atribulada a vida e contraditório o personagem, mais rica e interessante resulta a biografia. A grandeza de uma biografia reside em sua capacidade de remontar os casos de um completo e imperfeito quebra-cabeça existencial. Não adianta o biografado ser um poço de virtudes e coerências máximas; ficaria faltando o que lhe confere verdadeira densidade humana: os dilemas, as dúvidas, os contrastes, os equívocos e as conquistas. 

Graciliano escreveu um livro de memórias reveladoras sobre a infância e a pedagogia infantil no Nordeste em que viveu. Em sua obra de ficção, ele chega a usar claramente episódios, expressões e apelidos, como “Bezerro Encourado”. Qual o peso da infância em sua vida e obra?

A relação entre vida e obra numa biografia sempre implica a tentação biografista, ou seja, explicar a obra de um autor por suas experiências vividas. A vida de Graciliano foi repleta de circunstâncias que incidiram, sem dúvida, em sua criação artística: a infância atormentada no interior do Nordeste atrasado, a atribulada atividade política, o infortúnio da prisão sem culpa, a batalha para sobreviver em meio à consagração literária. Mas, ao mesmo tempo, foram tantas as curvas e zigue-zagues no percurso que o risco do biografismo se diluiu. Muitos fatos por ele vivenciados extrapolaram o mundo pessoal e se relacionaram diretamente aos contextos históricos, o que exigia do biógrafo tomar em conta fatores mais amplos, de natureza social e política. 
O adolescente Graciliano cometeu sonetos parnasianos. Apesar de não ter se tornado poeta e de esses exercícios não ultrapassarem o limite do sofrível, eles contribuíram para a sua ficção, no sentido de uma concepção poética da linguagem?
A iniciação poética, sob a influência parnasiana, constituiu apenas um rito de passagem, uma fase de experimentação que não teve qualquer reverberação posterior em sua prosa criativa. Graciliano sistematicamente se referia aos poemas parnasianos como “aquelas porcarias”. Chegou a combinar, décadas depois, com o filho Ricardo quais os escritos da juventude poderiam vir a público. 

Oswald de Andrade afirmou que o romance social nordestino da década de 1930 entrou em cena como um touro bravo. Como foram as relações de Graciliano com o modernismo paulista e com o modernismo nordestino, liderado por Gilberto Freyre, sob o nome de Movimento Regionalista?
Graciliano fazia restrições a certo vanguardismo sem causa social de modernistas paulistas. Mas não deixava de reconhecer que as amarras do academicismo haviam sido rompidas depois da Semana de 1922. Por outro lado, ele sempre avaliou o romance social nordestino com indisfarçável empatia. Em entrevista ao Diário de Pernambuco, em 10 de março de 1935, ele elogiou a geração de romancistas nordestinos por ter se recusado a importar “retalhos de coisas velhas e novas da França, da Inglaterra e da Rússia”, optando por vivenciar os problemas da terra e transpô-los literariamente. 

O que foi determinante para Graça, perdido nos confins de uma cidadezinha de Alagoas, tornar-se escritor?
O somatório da paixão pela leitura, a descoberta de que o papel poderia comportar voos da imaginação e a necessidade visceral de traduzir o mundo e suas profundas inquietações diante dele. O ambiente ao mesmo tempo tranquilo e limitador da uma cidadezinha do interior alagoano foi elemento determinante, porque Graciliano não se ajustava ao figurino de conformismo e passividade em um cotidiano repetitivo e estagnado. A literatura talvez tenha sido o seu grito mais estridente por horizontes, por aberturas para a vida e para os outros, sempre movido pela ideia da transformação de si mesmo e da sociedade como um todo. 

Como é a história de Graciliano, prefeito de Palmeira dos Índios, multar o próprio pai?
O período como prefeito de Palmeira dos Índios foi muito revelador de seus compromissos ético-políticos. Ele pôs fim à corrupção e ao clientelismo na prefeitura, impôs rígido controle sobre as finanças e os gastos públicos. Cumpriu à risca o Código de Posturas. Os comerciantes que sujavam ou ocupavam irregularmente as calçadas tiveram que se enquadrar. Quem ousava desrespeitar o código era advertido. Na reincidência, multado. Até Sebastião Ramos, pai de Graciliano, foi multado por ter a sua loja de tecidos descumprido as normas. “Prefeito não tem pai, a lei vale para todos”, disse-lhe o filho. Ele fez importantes obras em bairros pobres, abriu estradas e recuperou escolas públicas.

Em seu livro, há o capítulo “O Dostoiévski dos trópicos”. Qual a influência dos escritores russos sobre o temperamento de Graciliano Ramos?
Ele cultivava os clássicos russos: Dostoiévski, Tolstoi, Gorki e Gogol. E não negava a preferência por Dostoiévski, o que atribuo à convergência entre dois escritores que, com estilos diferentes e temáticas específicas, tinham especial atração pelas profundezas da alma humana. Com a nuança muito bem apontada por Mário de Andrade: “Graciliano não precisou fabricar figuras exageradas de alucinados, não precisou utilizar os figurinos de Dostoiévski – os seus heróis não falam por exclamações e por gestos”. 

Quem são heróis e anti-heróis de Graciliano Ramos? Que visão de mundo revelam?

Os principais herói e anti-herói são o próprio Graciliano. Ele amalgama as duas figuras. Ora como o narrador autobiográfico que se converte – mesmo sem se assumir assim – em um dos heróis, por exemplo, da resistência em meio às provações nos cárceres da ditadura Vargas. Ora como o anti-herói que não se perdoa e rema contra a maré, cheio de tormentos e vacilações, como se pode observar nos protagonistas dos romances Angústia e Caetés.

Graciliano professava o comunismo e, ao mesmo tempo, dizia que o criador do realismo socialista era um “cavalo”. Afinal, que comunista era Graciliano?

Ele acreditava firmemente que o socialismo era o caminho para a justiça e a emancipação sociais. Sua militância se caracterizou por extrema lealdade à causa socialista e ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), como também por problemas surgidos com o acirramento da Guerra Fria e a imposição pela União Soviética do realismo socialista como padrão estético aos partidos comunistas aliados. O realismo socialista era uma aberração, pois submetia a literatura e as artes ao dogmatismo e ao patrulhamento ideológico. Graciliano reagiu, pois não admitia a tutela ideológica sobre a criação literária. Ele entendia lucidamente que, por mais solidários que sejam às causas populares, escritores e artistas não podem sufocar suas inquietações, nem se conformar que o partidarismo lhes indique as ferramentas do ofício. Essa posição de independência intelectual – que o levou de fato a chamar de “cavalo” o mentor do realismo socialista, Andrei Zdanov – lhe custou incompreensões e críticas internas no partido, mas ele não recuou nem se curvou. Preferiu caminhar no fio da navalha, entre a fidelidade conceitual ao socialismo e a oposição às teses dogmáticas.

Há uma versão mais ou menos cristalizada de que Graciliano seria homem duro, ríspido e implacável. Até que ponto essa imagem é verdadeira?

A chamada “história oficial” apresentava Graciliano como intratável, ríspido, fechado em si mesmo. O meu livro propõe a verdade em outros termos. Os depoimentos que obtive de amigos, familiares e contemporâneos foram unânimes em desvelar um outro Graciliano. De fato, era um homem contido, avesso a externar suas emoções, às vezes irritadiço e ranzinza. Mas, aos que privavam de sua intimidade ou precisavam de sua ajuda para causas justas, ele era solidário, paciente, compreensivo e até bem-humorado. 

O Velho Graça
• De Dênis de Moraes
• Boitempo, 360 páginas, R$ 52

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