Rebeca Ramos
Estado de Minas: 09/11/2012
Uma sensação de dependência constante pode definir dois transtornos que, até agora, pareciam ter mecanismos de funcionamento bem diferentes. O transtorno de personalidade borderline (TPB) e as adicções (vícios) se manifestam de forma distinta, mas podem ser entendidos pelo mesmo princípio: a subordinação do afetado por alguém ou por alguma coisa. Essa forma de abordar os dois problemas é defendida na tese de mestrado “Reflexões sobre a relação entre a personalidade borderline e as adicções”, do psicanalista Marcelo Soares da Cruz, na Universidade de São Paulo (USP). De acordo com ele, com esse entendimento, o tratamento e a abordagem dos pacientes diagnosticados com TPB poderiam mudar.
“Os terapêuticos utilizados pela falta de compreensão por parte de profissionais de saúde mental, a aversão ou o preconceito existentes no contato com esses pacientes mudam com esse novo olhar”, acredita. Cruz explica que, até esse estudo, a personalidade borderline não era entendida como uma modalidade de adicção.
Segundo ele, foi encontrada vasta literatura que deu pistas sobre essa relação. “É um campo que apresenta multiplicidade de sentidos e concepções diversas, porém a mera classificação, seja qual for, não é capaz de abarcar a polissemia e a singularidade desses sofrimentos”, conta. A partir daí surgiu a necessidade de compreender o sentido dessas manifestações do sofrimento humano. A pesquisa foi realizada por meio da revisão dos conceitos psicopatológicos relacionados na literatura, suas articulações e ilustrações clínicas.
O psicanalista conta que foi possível compreender a personalidade borderline como uma modalidade de adicção, ou seja, que há uma proximidade entre a organização e a dinâmica psíquica nos dois quadros. “O ponto central é a compreensão da busca do paciente borderline por um outro, por relacionamentos e por presenças, como uma forma de dependência passível de ser comparada àquela que se estabelece por uma droga, por um jogo ou por comida, entre outros”, aponta. O motivo seria a dificuldade em “guardar o outro dentro de si” quando ele não está por perto. Por isso os pacientes com TPB teriam tanta insegurança e seriam acompanhados de uma sensação de ameaça.
Instabilidade emocional Na visão de Cruz, isso ocorre em função da necessidade que o paciente sente da presença de uma pessoa fundamental para a manutenção de sua estabilidade emocional. Há a experiência de uma ameaça iminente de abandono, de distância e perda das relações mais fundamentais nesses casos. “A dor e a desestruturação pela ameaça de perda desse outro geram uma espécie de ‘vício’ da presença concreta de determinadas figuras. O outro é tomado como presença extremamente necessária para aliviar uma vivência de colapso emocional”, explica.
“Esse é um sofrimento que revela um drama que todo ser humano está desafiado a superar, como a solidão, a instabilidade das relações, embora nem todos contem com condições de sustentação para isso. Olhar para a personalidade borderline como uma forma de dependência do outro, uma adicção, ajuda na compreensão de sentidos de um sofrimento que pode estar presente em qualquer pessoa, pois pertencem ao acontecer humano, talvez radicalmente humano”, analisa Cruz. Nesse grupo específico de pessoas estudadas, possivelmente haja uma intensificação de dramas que podem ser conhecidos, em diferentes níveis, por todos.
Professor da Universidade de Brasília (UnB), o psiquiatra Raphael Boechat sustenta que os dois quadros apresentam situações totalmente diferentes. O TPB, como o nome diz, é uma patologia da personalidade. Ou seja, o indivíduo tem um padrão comportamental constante durante a vida inteira, pois faz parte da sua personalidade. “Já as adicções surgem normalmente na juventude ou na idade adulta e, na maioria dos casos, passam com o envelhecimento. A adicção por si só não é uma patologia, pode sim fazer parte de alguma. O transtorno de personalidade já é uma patologia”, diferencia.
Contudo, após o estudo da USP, é possível compreender a busca presente nesses pacientes e a necessidade de aplacar um sofrimento intenso. Isso, ele ressalta, revela um aspecto esperançoso na busca pelo outro ou pela droga, numa tentativa de alívio ou restituição de algo que falta. “Conotação divergente de sentidos ligados à autodestruição, por exemplo. Também se desfaz o sentido único de busca por prazer nas adicções, que também podem ocorrer como busca de alívio de estados dolorosos, fato que não funciona em geral, mas contém sentidos diferentes do que o senso comum atribui”, observa.
Boechat conta que o diagnóstico é realizado por meio de consulta psiquiátrica. O objeto da adicção, na maioria dos casos, são as drogas. Elas são a chave do diagnóstico e também o motivo pelo qual surge a necessidade do tratamento. “No caso do transtorno de personalidade, a necessidade do tratamento surge por conflitos interpessoais ou por episódios de autoagressão”, diz.
Necessidade O psicanalista Jorge Curvina afirma que tanto as adicções como TPB têm características sintomáticas e estruturais comuns, sendo semelhantes principalmente no que se relaciona ao excesso e à forma analítica de amar, de se relacionar com o mundo e com as coisas. Ou seja, são marcados por uma dependência excessiva de determinado objeto ou relação. Ele observa que, nos dois quadros, a pessoa tem uma necessidade extrema de ser cuidada pelo outro, mais ou menos como um bebê precisa de sua mãe para sobreviver.
“A dependência, seja do excesso de amor ou das drogas, do jogo ou do sexo, é uma tentativa de preencher esse buraco, essa angústia”, diz. Dessa forma, se um paciente apresenta sintomas dessa natureza, é importante um diagnóstico diferencial, minucioso, para saber com que tipo de personalidade realmente se está lidando. “Isso porque, pela minha experiência clínica, acredito que todo TPB tem relações adictivas de alguma forma, mas nem toda pessoa que sofre por uma relação adictiva é um TPB”, pondera. Curvina destaca que, embora os problemas sejam semelhantes sintomaticamente, o adictivo tem uma estrutura de personalidade mais flexível, menos severa, em que o seu eu não está tão comprometido com a sensação de perda iminente. “Cabe ao profissional fazer essa diferenciação.”
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