Revista Veja -
          26/11/2012
Em honra à nova fase do Supremo Tribunal Federal, agora sob o comando do
 ministro Joaquim Barbosa, a coluna vai puxar do baú o humorista 
italiano Pitigrilli (1893-1975), muito popular no período anterior à 
guerra, depois esquecido, inclusive pela mancha da colaboração com o 
fascismo — e autor de um texto quem sabe útil à reflexão dos integrantes
 de nossa ultimamente festejada Corte. Pitigrilli conta que na escola 
seu professor de redação propôs à turma o seguinte tema: “Chegou-lhes 
uma carta da Alemanha: como não conhecem a língua alemã, escrevam a um 
amigo pedindo-lhe o obséquio de traduzi-la“. Ele (Pitigrilli) achou 
fácil, e escreveu: "Caro amigo, peço-lhe que traduza esta carta em 
italiano. Pelo que agradeço“. O professor indignou-se. Ele não se dava 
conta de que o desenvolvimento era menor que o enunciado do tema? 
"Julgava ter dito tudo“, responde o aluno. "Mas você não julgou 
necessário nem sequer se desculpar pelo incômodo que causava ao amigo?” 
"Se pensasse que lhe causaria algum incômodo, não lhe teria feito o 
pedido. “ O professor exaspera-se, chama-o de ‘respondão”.
"Você não percebe que não faz nem referência ao conhecimento que o amigo tem do alemão?” "Mas isso estava implícito.”
Foi
 a gota d’água. Levou uma nota zero, uma semana de suspensão, e ficou 
com a fama, na escola e na família, de achar que tudo está "implícito“. 
Para piorar, foi forçado a ler em voz alta para a classe a composição do
 primeiro da classe, um certo Pascoal Palumbo, a qual começava com as 
seguintes sublimes palavras: "Caro amigo, a você que tem a fortuna de 
conhecer o idioma de Armínio, já que seu nascimento se deu "ao pé do 
Quarnaro, que a Itália fecha e seus limites banha", como disse o Divino 
Poeta que está a cavaleiro de duas eras, se bem que nas veias lhe corra 
latino sangue gentil; a você, caro amigo, peço vênia se, roubando um 
pouco de seu tempo, que é tanto mais precioso porque o perder tempo a 
quem mais sabe mais desgosta, apelo à sua bem conhecida cortesia para um
 favor de não pequena monta“.
Os anos passam e eis que um dia o 
antigo aluno rebelde recebe uma carta de Estrasburgo escrita em alemão 
(a Alsácia, na juventude de Pitigrilli, era alemã). O jeito era pedir a 
um amigo para traduzi-la. Escreveu-lhe: "Caro amigo, peço-lhe que 
traduza esta carta. Felicidades”. Arrependeu-se. Voltou- lhe o terror do
 zero, da suspensão, do xingamento de "respondão”, da fama do 
"implícito”. Veio-lhe ao mesmo tempo à lembrança a redação de Pascoal 
Palumbo, que por sorte ainda conservava entre velhos guardados. Copiou 
todos os seus catorze robustos parágrafos. O segundo dizia: "Esta manhã 
me achava ainda sonolento, tendo demorado um tanto no rescaldo do 
tálamo, quando — quem é, quem não é? — toc, toc. toc. bateram à minha 
porta e me entregaram... adivinha o quê? Uma carta que, pelo selo 
berlinês, compreendi que vinha da Alemanha”. Seguiam-se alusões a Goethe
 e Schiller, mais Dante e Shakespeare, reminiscências da vida de Catão. 
Sócrates e Plutarco, uma citação em latim (“Nil volentibus arduum”), e 
promessas de no futuro aprender alemão e "compreender também as belezas 
dos monumentos literários dessa nação tão culta, sem no entanto descurar
 da Itália, que. como cultura, a ninguém se pospõe".
Passam-se os
 dias, e nenhuma resposta. Que teria havido? O missivista resolve ir em 
pessoa ao escritório do amigo, onde fica então sabendo do ocorrido. O 
amigo pegou a carta, leu algumas linhas do princípio, pulou para o fim, 
voltou para o meio, perguntou-se, "Que diz ele? Que quer?”, e afinal a 
jogou ao lixo. Quando soube, agora de viva voz, o que ao fim e ao cabo 
ela continha, disse: "Mas era tão simples. Por que não escreveu: ‘Caro 
amigo, peço que traduza esta carta em italiano“?”
Já se adivinha a
 moral desta história. Os ministros do Supremo Tribunal estão há mais de
 três meses julgando o processo do mensalão. O caso é complexo e os réus
 são muitos, mas a demora também se deve aos votos longuíssimos, tantas 
vezes repetitivos, outras inchados de erudição e de retórica. O novo 
presidente, Joaquim Barbosa, provou ser homem destemido: que tal encarar
 a causa do voto enxuto e direto? O coabitante deste espaço, J.R. Guzzo,
 propôs na semana passada que os ministros falassem o português corrente
 no Brasil. Se além disso o fizessem de maneira concisa o lucro seria em
 dobro. O ministro Joaquim Barbosa terá uma passagem inesquecível pela 
presidência da Corte se, dada a máxima vênia aceitar o duplo desafio 
que, unida, esta página, com a humildade devida, mas também com os 
melhores sentimentos, lhe propõe.
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