"Sentimental" reflete busca por intensidade emotiva
Novo livro do carioca Eucanaã Ferraz reúne poemas que incorporam traços de outras linguagens e retratam cenas do cotidiano
A boa safra trouxe -entre tantos- livros de nomes experimentados como Antonio Cicero, Francisco Alvim, Angélica Freitas e Paulo Henriques Brito.
A esse rol se juntou recentemente "Sentimental", do carioca Eucanaã Ferraz, 52, reunião de 56 poemas que foram escritos ou burilados nos últimos quatro anos. Alguns desses, contou ele em entrevista à Folha, iniciados há dez, 20 anos.
"Não que o tempo importe. Um poema iniciado ou terminado em uma semana pode ser muito melhor do que o que levou uma década para ficar pronto", pondera.
Espalhados em cadernos, escritos a lápis ou caneta, os versos só vão para o computador quando o poeta os julga no ponto de serem maquinados, relidos, reescritos.
A feitura deles costuma se dar em solidão. Uma adequação, segundo o poeta, sem ressalvas entre ofício e sua personalidade.
"O que julgo ter me empurrado para a poesia foram a timidez e a preguiça de trabalhar coletivamente."
Isso desde cedo, quando na adolescência Ferraz mimetizava versos de Fernando Pessoa/Alberto Caeiro (1888-1935). Desse exercício, de tantas leituras, do olhar apurado para o cotidiano e do ouvido para a linguagem, surgiu, então, o poeta formado.
CÓDIGOS E LIMITES
A escolha do título se adequou, segundo ele, ao tom dominante da obra, como aconteceu com "Cinemateca", de título autoexplicativo, lançado em 2008.
"Percebi uma liberdade de escrita e de uma intensidade emotiva que eu desejava destacar", explica.
Exemplos dessa sentimentalidade -livre de pieguice-não faltam no novo livro.
Estão em poemas como "Sob a Luz Feroz do Teu Rosto", em que o poeta descreve a impossibilidade de amar a um leão, ou em "Comparações Florísticas", em que flores e plantas permeiam o caminho do personagem.
Nesses e no restante, está a busca, segundo conta Ferraz, por libertar a poesia da linguagem.
"O poema deve nascer da grande ambição de escapar dos códigos, leis, limites e sentidos", diz.
Se deve ser ambição também da poesia atingir o grande público, Ferraz tem lá suas dúvidas.
"A poesia é o que é. O teatro, a música e mesmo a arquitetura puderam se converter em espetáculo, entretenimento para além da qualidade estética. Como a poesia isso não ocorreu."
FORMA E LINGUAGEM
Se não se agigantou como seus pares das artes, nada impede, no entanto, que a poesia incorpore traços dessas outras linguagens.
"Sentimental" mantém uma marca da obra de Ferraz: poemas que traduzem em versos cenas, pequenos enredos, personagens do cotidiano, leves, por vezes reflexivos, como se inventariasse o dia a dia.
"Gosto que o poema dê a ver, que tenha algo de fotografia, do cinema."
Assim ele justifica os filmetes engendrados nas suas narrativas poéticas, também repletas de referências a outros poetas, como Carlos Drummond de Andrade (1902-87) e Ferreira Gullar.
RAIO-X EUCANAÃ FERRAZ
Nasce no Rio de Janeiro, em 1961. Vive até hoje na cidade
OBRA
É autor, entre outros, de "Martelo" (1997), "Desassombro" (2002) e "Cinemateca" (2008)
CARREIRA
É professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Organizou, entre outros, os livros "Letra Só" (2003) e "O Mundo Não É Chato" (2005), ambos de Caetano Veloso. É coordenador editorial da Coleção Vinicius de Moraes, da Companhia das Letras
Escritor revê legado moderno do século 20, mas não insere perspectiva atual
Para se compreender o sentimento é preciso ter gana para perfurar camadas enrijecidas da experiência
De forma geral, ele trata do mundo que o cerca, com seus aspectos carcomidos (leões de pedra, um busto do príncipe dos poetas), com suas viagens, como a Lisboa e Paris, uma Paris invadida por bois (seriam os bois drummondianos ou os do balé de Darius Milhaud?), as transformações do cotidiano.
Neste sentido, estamos diante de um livro de poemas atual, conectado às questões mais gerais do homem. Seu projeto, desde a primeira página de "Sentimental", sexta coletânea em sua carreira, vem expresso no primeiro poema do livro, que se chama, com toda a simplicidade, "O Coração".
Trata-se de um dístico: "Quase só músculo a carne dura./ É preciso morder com força". Como em toda boa concisão moderna, cabe muita coisa dentro destes mínimos versos.
Primeiro, a observação física do coração, um músculo; a ambiguidade da palavra "dura", que é tanto um adjetivo (da resistência desta carne) quanto um verbo (no sentido de duração, a carne que suporta os revezes da vida). Penetrar essas camadas é um projeto: "É preciso morder com força".
A se tomar o título como eixo do livro, para se compreender o sentimento é preciso "morder com força", ter gana para perfurar camadas enrijecidas da experiência, já que a experiência moderna parece estar petrificada. Esse é o ponto forte de seu livro, como projeto de investigação sentimental e ao mesmo tempo racional das coisas que nos cercam.
LEGADO MODERNO
No entanto, desde o começo, o leitor precisa lidar com uma série de obstáculos advindos do mundo da cultura moderna, ou melhor, do legado moderno do século 20, que está tanto na linguagem do poeta quanto na estrutura dos seus poemas.
E é esse legado que cria o problema central no conjunto de Eucanaã Ferraz. Enfrentar a petrificação da experiência a partir e na dependência de um modelo poético já consolidado e consagrado, um modelo de prestígio e que o próprio poeta busca homenagear, sem perscrutá-lo com perspectiva atual.
E não são poucas as referências, ou homenagens, expressas. São os casos, por exemplo, de "A Beleza É uma Ferida que nos Atinge", que cita poemas de Ferreira Gullar e Alberto Martins; "Da Vista e do Visto", que dialoga com o poema "Tarde de Maio", de Drummond; "Sangue do Meu Sangue", que parte do poema "A Pulga", de Murilo Mendes, entre outros.
CÓPIA DO MARFIM
Tomados fora de seu contexto histórico, há como que uma petrificação do próprio legado moderno. E essa petrificação parece espraiar-se ao conjunto dos poemas, de forma geral.
Num poema-homenagem ao seu colega Antonio Cicero, "Vida e Obra", ele termina, comparando a poesia com o copo de vinho, com o seguinte dístico: "Repare que o mesmo se dá conosco: o peso/ faz-se leve em nós se um verso nos acontece". A poesia alivia. Não o leitor, mas apenas o poeta, ou poetas.
Eis o nó: se a arte moderna nasceu justamente na contramão do alívio, com desejos de sacudir o velho sofá burguês (ela queria ser antiburguesa), em "Sentimental" parece que ela volta ao sofá do belo, com estofado moderno.
E o poeta, recomposto em sua torre, não mais de marfim, mas de alguma cópia do marfim (e a ideia de cópia está expressa em "Melancolia", um dos melhores do livro), rumina "certos pensamentos e monotonias".
Tudo em chave prestigiosa, ou seja, com o prestígio da arte moderna. Mas o coração do presente parece ser mais duro. Ou pede novas "dentaduras duplas".
SENTIMENTAL
AUTOR Eucanaã Ferraz
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 32 (96 págs.)
AVALIAÇÃO regular
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