Marcelo Miranda
Estado de Minas: 11/01/2013
“Os personagens não baixam a cabeça”
Depois de atrair mais de 11 mil espectadores no primeiro fim de semana em cartaz em apenas três capitais brasileiras onde estreou, O som ao redor mais do que triplica sua presença no mercado a partir de hoje. O primeiro e festejado longa de ficção do pernambucano Kleber Mendonça Filho vai se manter em São Paulo, Rio e Recife, onde é exibido desde o dia 4, e se espalhar por mais sete cidades do país. Em Belo Horizonte, o filme entra em duas salas: uma do Belas Artes e outra do Cinemark BH Shopping, furando a fila das estreias já programadas. Façanha rara para trabalho independente brasileiro, que está só na segunda semana de circulação. Nos últimos dias, comentários sobre O som ao redor se tornaram coqueluche nas redes sociais, incluindo cobranças para que o trabalho fosse logo exibido em determinadas cidades. O boca a boca já tem funcionado como publicidade espontânea nos mais de 40 festivais mundo afora pelos quais o filme viajou. Reforçaram o coro de expectativas os diversos prêmios importantes que ganhou e o espaço conquistado nas listas de melhores do ano do jornal The New York Times e da revista britânica Sight and sound. A excelente receptividade de público e crítica no Brasil tornou o filme um fenômeno singular no cenário audiovisual recente. Leia, a seguir, conversa com o diretor e roteirista Kleber Mendonça Filho.
Qual foi a gênese de O som ao redor?
Comentei com alguns amigos que tinha vontade de fazer num filme a transposição de um engenho de cana-de-açúcar, algo muito forte no Brasil, mais ainda em Pernambuco, para uma rua de cidade moderna, no caso, o Recife de hoje. Claro que não contaria isso para o espectador, mas, se mostrasse direitinho, ia aparecer aquele engenho, com as casas dos vassalos, a casa grande (representada por um apartamento de cobertura habitado por um autêntico senhor de engenho), os empregados, os subalternos, os capatazes e os jagunços. Também me animei a contrabandear elementos de western para dentro do filme. Quando estreamos no Festival de Roterdã (em janeiro de 2012), já apareceu uma crítica percebendo a relação com o faroeste.
Retratar um novo tipo de classe média e encontrar um olhar ao mesmo tempo irônico e afetuoso para a atual pirâmide social brasileira, elementos muito significativos no filme, já eram parte da ideia?
Tenho 44 anos e lembro muito bem do Brasil de duas décadas atrás. Sempre tivemos líderes do mesmo molde: todos brancos, vindos do Sul-Sudeste, ou originários de dinastias políticas conhecidas e estabelecidas, e que passaram por universidades estrangeiras. Todos sempre da elite política do país, e quase sempre muito ruins. Então veio Lula, com perfil completamente diferente, da classe trabalhadora, sem a educação associada à elite, e sendo um cara do Nordeste. Sem entrar em questões políticas aqui, é inegável que o Lula trouxe uma cara nova à ideia de poder no Brasil, algo muito forte especialmente para as classes mais baixas. Muita coisa mudou nos últimos 12 anos em relação ao comportamento dos mais pobres diante dos ricos e poderosos. Não só em relação ao poder aquisitivo, já que tem mais gente ativa na sociedade capitalista, mas também na autoestima e no comportamento. Tudo isso está em O som ao redor, em personagens que, vindos das classes mais baixas, nunca baixam a cabeça.
Apesar do baixo orçamento (R$ 1,8 milhão), essa foi a maior produção da sua carreira e teve cenas na rua e no apartamento onde você mora. Como foi a experiência?
A logística, claro, é complicada. Tivemos a sorte de conseguir 70% do que eu queria das locações no bairro mesmo (Setúbal), e os outros 30% procuramos em outros lugares. Em geral as pessoas receberam muito bem todo aquele movimento na rua. O que não é fácil, já que você coloca 120 pessoas na rua, quatro caminhões, isola a área com fita, põe a polícia, liga câmeras. Via aqueles caminhões de equipamento chegando e coçava a cabeça, achava coisa demais, sempre fui acostumado a trabalhar com muito menos gente e estrutura. Mas quando se faz um filme assim, tudo é mais complicado.
Há na narrativa uma atmosfera de grande estranhamento e apreensão sobre o que pode acontecer a qualquer momento, mas nunca sabemos como nem o que seria. Como você buscou atingir essa sensação?
Filmes e livros narrativos têm sempre que ser baseados em tensão e elementos díspares se enfrentando o tempo todo. No caso de O som ao redor, as situações são normais e mundanas, mas os enquadramentos e o tratamento do material não são. Filmar algo naturalista, como um personagem caminhando até a praia, dentro de uma concepção de cinema, seja lá o que for isso, é outra coisa. Não existe um manual de instruções para o que eu chamo “filme de cinema”, então seguia meus instintos. O medo faz parte da vida da gente e é muito cinematográfico. E o filme risca uma linha no chão em relação ao fantástico e não a ultrapassa. Costumo brincar que poderia pousar uma espaçonave no chão da rua, o Clodoaldo (personagem de Irandhir Santos) entrar nela e ir embora. Mas, nesse filme, isso não acontece.
Como o título entrega, houve cuidado especial com o som do filme, algo muito importante também em outros trabalhos seus. Que tipo de relação sonora você buscou agora?
Tivemos uma equipe de som gravando o filme inteiro, o que deu um total de 50 horas. O pessoal que trabalha com som é muito “viajado”, eles gravam tudo mesmo depois que o trabalho no set acaba. No período de montagem, todo dia eu ficava ao menos meia hora ouvindo aquele material, fazendo anotação e marcações. Diferentemente de muita gente que conheço, que monta os filmes seguindo narrativamente a imagem, era importante para mim atentar para os efeitos sonoros. Tivemos, ao todo, nove pessoas na equipe de som em mais de um ano de montagem. Numa determinada cena, por exemplo, vemos a dona de casa (Maeve Jinkings) no quarto, sozinha, olhando o espelho, e ao mesmo tempo podemos escutar uma discussão feia ao telefone entre uma garota e um provável namorado. Quisemos transmitir a ideia de que as coisas aconteciam no primeiro plano do filme, mas outras pessoas, outras situações estavam presentes ali perto. Buscamos esse efeito pelo som: ele é uma prova de vida, e é um elemento mal-educado, que entra pela janela e o incomoda. Viajo há 11 meses com o filme e é curioso perceber que quando ele está com o som muito bom durante a exibição, as pessoas adoram; quando está mais ou menos, a reação tende a ser negativa.
A experiência de 12 anos como crítico de cinema serviu para a feitura de O som ao redor em alguma medida?
Alguém muito cinéfilo poderia ter usado algumas precauções que usei no filme. A ideia que mais me movia era a de que queria fazer algo que eu mesmo gostaria de ver. E por quê? Porque esse tipo de abordagem não tem sido muito feito, não só no Brasil, mas no mundo: um filme sobre uma rua, com sotaque local. Assistir a muita coisa e ter uma consciência de cinema – de conhecer, de identificar a linguagem, de saber o que já foi feito antes de mim – me levou a fazer O som ao redor sem estar às cegas.
Você esperava receptividade mundial tão boa quanto a que tem colhido dentro e fora do Brasil desde quando o filme começou a circular?
Essa é a grande surpresa com O som ao redor. A gente foi para Roterdã (primeiro evento por onde o longa passou) pensando como ia se sair um filme sobre a minha rua. E ele foi dando cambalhotas no ar. Um texto curatorial do Festival de Copenhague chamava atenção para o fato de que o filme fala do medo da sociedade ocidental, que teme a si própria. E é isso, percebi que não era uma coisa só do Recife. O medo do outro é universal. Claro que, quando estreamos no Brasil (na competição do Festival de Gramado, em agosto de 2012), o filme se desmembrou em outra camada, porque estávamos aqui no país e alguns elementos são mais bem decodificados pelos brasileiros. Mas o grosso, os detalhes, as pessoas captam em qualquer lugar, assim como a gente capta as coisas em filmes iranianos ou dinamarqueses. O trabalho precisa ser forte o suficiente para se sustentar, e essa é a melhor publicidade que ele pode ter.
Depois de atrair mais de 11 mil espectadores no primeiro fim de semana em cartaz em apenas três capitais brasileiras onde estreou, O som ao redor mais do que triplica sua presença no mercado a partir de hoje. O primeiro e festejado longa de ficção do pernambucano Kleber Mendonça Filho vai se manter em São Paulo, Rio e Recife, onde é exibido desde o dia 4, e se espalhar por mais sete cidades do país. Em Belo Horizonte, o filme entra em duas salas: uma do Belas Artes e outra do Cinemark BH Shopping, furando a fila das estreias já programadas. Façanha rara para trabalho independente brasileiro, que está só na segunda semana de circulação. Nos últimos dias, comentários sobre O som ao redor se tornaram coqueluche nas redes sociais, incluindo cobranças para que o trabalho fosse logo exibido em determinadas cidades. O boca a boca já tem funcionado como publicidade espontânea nos mais de 40 festivais mundo afora pelos quais o filme viajou. Reforçaram o coro de expectativas os diversos prêmios importantes que ganhou e o espaço conquistado nas listas de melhores do ano do jornal The New York Times e da revista britânica Sight and sound. A excelente receptividade de público e crítica no Brasil tornou o filme um fenômeno singular no cenário audiovisual recente. Leia, a seguir, conversa com o diretor e roteirista Kleber Mendonça Filho.
Qual foi a gênese de O som ao redor?
Comentei com alguns amigos que tinha vontade de fazer num filme a transposição de um engenho de cana-de-açúcar, algo muito forte no Brasil, mais ainda em Pernambuco, para uma rua de cidade moderna, no caso, o Recife de hoje. Claro que não contaria isso para o espectador, mas, se mostrasse direitinho, ia aparecer aquele engenho, com as casas dos vassalos, a casa grande (representada por um apartamento de cobertura habitado por um autêntico senhor de engenho), os empregados, os subalternos, os capatazes e os jagunços. Também me animei a contrabandear elementos de western para dentro do filme. Quando estreamos no Festival de Roterdã (em janeiro de 2012), já apareceu uma crítica percebendo a relação com o faroeste.
Retratar um novo tipo de classe média e encontrar um olhar ao mesmo tempo irônico e afetuoso para a atual pirâmide social brasileira, elementos muito significativos no filme, já eram parte da ideia?
Tenho 44 anos e lembro muito bem do Brasil de duas décadas atrás. Sempre tivemos líderes do mesmo molde: todos brancos, vindos do Sul-Sudeste, ou originários de dinastias políticas conhecidas e estabelecidas, e que passaram por universidades estrangeiras. Todos sempre da elite política do país, e quase sempre muito ruins. Então veio Lula, com perfil completamente diferente, da classe trabalhadora, sem a educação associada à elite, e sendo um cara do Nordeste. Sem entrar em questões políticas aqui, é inegável que o Lula trouxe uma cara nova à ideia de poder no Brasil, algo muito forte especialmente para as classes mais baixas. Muita coisa mudou nos últimos 12 anos em relação ao comportamento dos mais pobres diante dos ricos e poderosos. Não só em relação ao poder aquisitivo, já que tem mais gente ativa na sociedade capitalista, mas também na autoestima e no comportamento. Tudo isso está em O som ao redor, em personagens que, vindos das classes mais baixas, nunca baixam a cabeça.
Apesar do baixo orçamento (R$ 1,8 milhão), essa foi a maior produção da sua carreira e teve cenas na rua e no apartamento onde você mora. Como foi a experiência?
A logística, claro, é complicada. Tivemos a sorte de conseguir 70% do que eu queria das locações no bairro mesmo (Setúbal), e os outros 30% procuramos em outros lugares. Em geral as pessoas receberam muito bem todo aquele movimento na rua. O que não é fácil, já que você coloca 120 pessoas na rua, quatro caminhões, isola a área com fita, põe a polícia, liga câmeras. Via aqueles caminhões de equipamento chegando e coçava a cabeça, achava coisa demais, sempre fui acostumado a trabalhar com muito menos gente e estrutura. Mas quando se faz um filme assim, tudo é mais complicado.
Há na narrativa uma atmosfera de grande estranhamento e apreensão sobre o que pode acontecer a qualquer momento, mas nunca sabemos como nem o que seria. Como você buscou atingir essa sensação?
Filmes e livros narrativos têm sempre que ser baseados em tensão e elementos díspares se enfrentando o tempo todo. No caso de O som ao redor, as situações são normais e mundanas, mas os enquadramentos e o tratamento do material não são. Filmar algo naturalista, como um personagem caminhando até a praia, dentro de uma concepção de cinema, seja lá o que for isso, é outra coisa. Não existe um manual de instruções para o que eu chamo “filme de cinema”, então seguia meus instintos. O medo faz parte da vida da gente e é muito cinematográfico. E o filme risca uma linha no chão em relação ao fantástico e não a ultrapassa. Costumo brincar que poderia pousar uma espaçonave no chão da rua, o Clodoaldo (personagem de Irandhir Santos) entrar nela e ir embora. Mas, nesse filme, isso não acontece.
Como o título entrega, houve cuidado especial com o som do filme, algo muito importante também em outros trabalhos seus. Que tipo de relação sonora você buscou agora?
Tivemos uma equipe de som gravando o filme inteiro, o que deu um total de 50 horas. O pessoal que trabalha com som é muito “viajado”, eles gravam tudo mesmo depois que o trabalho no set acaba. No período de montagem, todo dia eu ficava ao menos meia hora ouvindo aquele material, fazendo anotação e marcações. Diferentemente de muita gente que conheço, que monta os filmes seguindo narrativamente a imagem, era importante para mim atentar para os efeitos sonoros. Tivemos, ao todo, nove pessoas na equipe de som em mais de um ano de montagem. Numa determinada cena, por exemplo, vemos a dona de casa (Maeve Jinkings) no quarto, sozinha, olhando o espelho, e ao mesmo tempo podemos escutar uma discussão feia ao telefone entre uma garota e um provável namorado. Quisemos transmitir a ideia de que as coisas aconteciam no primeiro plano do filme, mas outras pessoas, outras situações estavam presentes ali perto. Buscamos esse efeito pelo som: ele é uma prova de vida, e é um elemento mal-educado, que entra pela janela e o incomoda. Viajo há 11 meses com o filme e é curioso perceber que quando ele está com o som muito bom durante a exibição, as pessoas adoram; quando está mais ou menos, a reação tende a ser negativa.
A experiência de 12 anos como crítico de cinema serviu para a feitura de O som ao redor em alguma medida?
Alguém muito cinéfilo poderia ter usado algumas precauções que usei no filme. A ideia que mais me movia era a de que queria fazer algo que eu mesmo gostaria de ver. E por quê? Porque esse tipo de abordagem não tem sido muito feito, não só no Brasil, mas no mundo: um filme sobre uma rua, com sotaque local. Assistir a muita coisa e ter uma consciência de cinema – de conhecer, de identificar a linguagem, de saber o que já foi feito antes de mim – me levou a fazer O som ao redor sem estar às cegas.
Você esperava receptividade mundial tão boa quanto a que tem colhido dentro e fora do Brasil desde quando o filme começou a circular?
Essa é a grande surpresa com O som ao redor. A gente foi para Roterdã (primeiro evento por onde o longa passou) pensando como ia se sair um filme sobre a minha rua. E ele foi dando cambalhotas no ar. Um texto curatorial do Festival de Copenhague chamava atenção para o fato de que o filme fala do medo da sociedade ocidental, que teme a si própria. E é isso, percebi que não era uma coisa só do Recife. O medo do outro é universal. Claro que, quando estreamos no Brasil (na competição do Festival de Gramado, em agosto de 2012), o filme se desmembrou em outra camada, porque estávamos aqui no país e alguns elementos são mais bem decodificados pelos brasileiros. Mas o grosso, os detalhes, as pessoas captam em qualquer lugar, assim como a gente capta as coisas em filmes iranianos ou dinamarqueses. O trabalho precisa ser forte o suficiente para se sustentar, e essa é a melhor publicidade que ele pode ter.
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