terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Francisco Daudt

FOLHA DE SÃO PAULO

Vasto tempo
'As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, estas ficarão'
Einstein submetia-se por sua fama a situações constrangedoras. Ocasião de gala. Sentado junto à socialite, ouviu dela uma dessas perguntas feitas para preencher o silêncio: "Professor, poderia me explicar o conceito de tempo na sua teoria da relatividade?" Conformado, respondeu: "Imagine-se por duas semanas junto a quem mais ama. Agora se imagine por trinta segundos sentada sobre uma chapa em brasa. O que demorou mais a passar?"
O escritor Carlos Sussekind me apresenta sua intriga: "Agora me dizem que é preciso viver o presente. Não entendo isso. Minha mente transita sem parar entre o passado e o futuro, qualquer que seja o estímulo atual".
Consolo-o: todos nós somos assim. Só quem vive apenas o presente é quem tem Alzheimer. Se o leitor vivesse isto, essas manchas de tinta que vê não teriam sentido algum. Sem perceber, seu curso de alfabetização é presente.
A principal característica que nos diferencia de outros animais é quantitativa, e nosso bê-a-bá dá a dimensão dos bilhões de terabites contidos no nosso cérebro.
É um erro comum pensar que o inconsciente freudiano é inalcançável por conta da repressão. Não é. O tamanho de informação inconsciente que carregamos é infinitamente maior do que o reprimido, apesar de um contaminar o outro.
Mas está inconsciente por quê? Pela mesma razão que as fundações do prédio onde você mora nunca mais serão vistas: elas são básicas, mas são passado enterrado. Tanto quanto nossa incapacidade de reconstruir nossa alfabetização (que, aliás, continua em processo: pense em excitação; hesitação; exceção; estender; extenso; tenho "uma dó" ou tenho um dó? Você não hesita antes de escrevê-las?). É passado e presente ao mesmo tempo, já que nosso inconsciente é atemporal.
Quem não teve dor de barriga em janeiro, pensando no vestibular em dezembro?
Lá vêm os gregos de novo em nosso socorro. Foi ontem mesmo (há 2.400 anos) que eles pensaram na ideia de kairós, o tempo oportuno, ou o momento em que as coisas se encaixam. Ele é intensivo, em contraste com cronos, o tempo medido, extensivo, o que se estende.
Escrevo no 31 de dezembro. Um dia perdido no cronos, mas não no kairós. Temos uma impressão, ancorada no inconsciente, de que ele tem algo de especial, um poder mágico de virada, hora de olhar o ano que passou, planejar o que vai começar, dimensionar a velhice.
Andei pensando nesses conceitos de tempo ainda outro dia, e resolvi escrever sobre eles, mas só hoje me dei conta de que escrevo num caderno chamado "Cotidiano", e de que é Réveillon: vai ser kairós assim no Hades...
Drummond escreveu uma crônica num dia de apagão, descrevendo sua casa vista à luz de um foco de lanterna, e de como cada fragmento iluminado ganhava um mundo de memórias que, se visto em conjunto, não seriam despertadas. Para cair no esquecimento do inconsciente assim que o foco se movia.
É dele também este primor da atemporalidade da mente: "...as coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, estas ficarão".

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