quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Marina Colasanti - É perigoso, na Índia‏


Estado de Minas: 17/01/2013 
Na Índia, é muito perigoso para uma mulher andar de ônibus. É muito perigoso para um mulher, na Índia, andar, mesmo a pé. É perigosíssimo para uma mulher, na Índia, ficar viúva. Na Índia, desaconselha-se vivamente a uma mulher ficar idosa – e, aliás, faz-se o possível para que isso não aconteça. O melhor, para uma mulher, na Índia, é não nascer mulher.

Agora mesmo, depois do escândalo da jovem estuprada por seis num ônibus e morta a golpes de barra de ferro, uma outra passageira de ônibus foi estuprada por sete durante toda uma noite, e uma terceira nem que sequer estava em um ônibus foi sequestrada, estuprada, estrangulada e jogada numa vala – diz o pai dela que foi trabalho da família do marido, marido incluído, ressentidos todos porque o dote levado para o casamento havia sido modesto.

Na Índia, ainda agora em pleno desenvolvimento, se o dote de uma noiva é considerado insuficiente, não se devolve o dote, se devolve a noiva, de preferência, morta. Devem-se à indústria do dote cerca de 100 mil assassinatos de mulheres a cada ano. 

Se o dote for bom, há outros recursos. As agressões, a escravização doméstica, as lutas de castas, as ofensas à honra, as disputas familiares, o infanticídio feminino conseguem elevar essa estatística para 2 milhões anuais. E, se tudo falhar, pode-se sempre mandar a fêmea da espécie dar uma volta de ônibus.

Suspeito que a antiga tradição de imolar a viúva na pira funerária do marido seja menos uma imposição do que uma escolha, pois a viver nesse inferno, melhor o fogo.

Na década de 60, quando éramos hippies e buscávamos a elevação espiritual, ficou bem, além de procurar a iluminação em todas as drogas, gostar da Índia. Tive vários amigos e amigas que lá passavam longas temporadas, regressando à beira do êxtase. Sobre a questão das castas e da violência contra as mulheres passavam levitando, era tudo parte do grande pacote místico que os encantava e que não podia ser objeto de críticas.

Li recentemente um belíssimo livro sobre a Índia, escrito por quem entende dela, a jovem indiana Arundhati Roy. O deus das pequenas coisas é um romance, mas pode ser assimilado como um ensaio, porque tudo o que conta – a não ser a trama – é verdadeiro, fruto de uma observação minuciosa somada a vivências pessoais. Na história de três gerações de uma mesma família, as mulheres tecem os fios mais importantes e sofrem, todas elas sofrem, a matriarca apanhando do marido, uma tia vivendo em segredo a paixão por um missionário, uma menina sofrendo a ausência da mãe, e a mãe entregando-se no escuro segredo da noite a um homem da mais baixa casta, um intocável.

O livro de Arundhati pode ser lido como um ensaio não apenas porque se passa em Kerala, onde ela própria nasceu e cresceu, mas porque, ativista nas questões femininas e contra o sistema de castas, essa jovem mulher conhece bem o universo de preconceitos de que fala.

A posição social das indianas tem melhorado muito nas últimas décadas, figuras femininas se destacam em todas as áreas e multidões estão indo para as ruas clamando por leis de proteção mais severas. Mas no país ainda preso às antigas estruturas patriarcais, o avanço das mulheres é vivido pelos homens como uma ameaça e está gerando violência ainda maior contra elas.

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