Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 17/01/2013
No fim do ano passado, com reflexos entrando janeiro adentro, dois acontecimentos literários chamaram a atenção, por motivos diferentes: o fenômeno dos livros eróticos femininos descartáveis, à la Cinquenta tons de cinza, de E. L. James; e o sofisticado romance Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera, que despertou interesse de leitores (já vendeu 9 mil exemplares) e da crítica. Nascido em 1979, em São Paulo, e criado no Rio Grande do Sul, Galera estreou na literatura em 2001, com o volume de contos Dentes guardados, pelo selo editorial Livros do Mal, de Porto Alegre, do qual foi um dos criadores.
Nos anos 2000, outros livros nacionais seguiram enredo semelhante: os romances Perdas e ganhos, de 2003, da gaúcha Lya Luft, ficou por várias semanas entre os mais vendidos; e Dois irmãos, de 2000, de Milton Hatoum, teve o mérito, pela repercussão obtida entre a crítica, de colocar o escritor amazonense entre os principais nomes da literatura brasileira contemporânea.
Outro romance do mesmo período, Filho eterno, de 2007, do catarinense morador de Curitiba Cristovão Tezza, também deu o que falar. História autobiográfica, na qual o escritor, num tom comovente e maduro, narra sua complexa relação com o filho portador de síndrome de Down, o livro garantiu ao autor os mais importantes prêmios literários da temporada.
Para Noemi Jaffe, doutora em literatura brasileira pela USP e crítica literária, livros como Cinquenta tons de cinza são os que, provavelmente, vão dar o tom do cenário que está se configurando no universo literário. “Percebo os leitores aumentando, mas a qualidade diminuindo e acho que a tendência é piorar. Nesse sentido, vejo com bons olhos um fenômeno de vendas como está ocorrendo com Barba ensopada de sangue, embora não se compare aos Cinquenta tons, porque estimula uma leitura maciça, de qualidade”, pontua.
Autora de A verdadeira história do alfabeto, Noemi acha que Barba ensopada de sangue é até agora, o melhor livro de Daniel Galera, independentemente do fato de ter sido cercado por uma campanha midiática forte, com direito a três capas diferentes. “Certamente é um marco nesse sentido: da aposta em torná-lo o novo nome da literatura brasileira. Mas o livro é realmente bom, embora seja preciso esperar ainda bastante tempo para afirmar algo categórico”, diz. Da geração de Galera, que está sendo reconhecida, a professora cita escritores como Michel Laub, Fabrício Corsaletti, Angélica Freitas e Verônica Stigger. Para Noemi, é difícil dizer se esta geração já deixou sua marca: “Isso só o tempo irá falar”.
Já para o escritor e crítico Nelson Oliveira, que passou a assinar Luiz Braz, vários escritores brasileiros chamaram a atenção em 2012. Entre eles, destaca Angélica Freitas, com a coletânea de poemas Um útero é do tamanho de um punho; Luisa Greisler, com o romance Quiçá; e Daniel Galera, com Barba ensopada de sangue, na sua opinião um romance valioso e maduro. “Mas seria injusto com os outros afirmar que esse livro foi o principal lançamento do ano passado. Acredito que o próprio Daniel concordaria comigo, que seu romance pertence a uma interessante safra de títulos nacionais, todos muito bons”, afirma.
O pernambucano Marcelino Freire, companheiro de geração de Galera, acha que Barba ensopada de sangue é um marco na carreira do autor. “Ele está maduro, cada vez melhor. Leva a sério seu ofício. Lembro-me dele carregando caixas de livros nas costas, na Feira do Livro de Porto Alegre. Tenho orgulho de ter sido e estar sendo testemunha de tudo isso”, diz Marcelino.
Quem também está atento ao que se publica no país é o escritor e crítico mineiro Ronaldo Cagiano. Nascido em Cataguases, na Zona da Mata mineira, e atualmente vivendo em São Paulo, ele diz que a geração de escritores que surgiu dos anos de 1990 para cá – e à qual pertence Daniel Galera – se diferencia da dos anos de 1960/70, que produziu uma literatura caudatária do espírito de resistência, vanguardista e renovadora. Já os autores que vieram depois, segundo ele, pertencem a outra vertente, influenciados por momento distinto e pelos ícones da modernidade, beneficiados pelo ambiente da tecnologia e pelos fetiches da comunicação e cultura de massas. “São escritores menos ousados, alienados de um projeto mais crítico engajado, mas tendentes a uma literatura que agrade ao mercado”, diz Cagiano.
Quanto a Barba ensopada de sangue, o crítico reafirma a opinião de que o romance é um marco na carreira de Daniel Galera, não só por ter alcançado maturidade e segurança em sua arquitetura formal, mas pelo mergulho radical numa história tensa e densa. “É uma narrativa habilidosa e instigante, que vem consolidar o seu nome. Desde sua estreia em 2001, Daniel Galera, com seu estilo peculiar, vem só crescendo”, afirma Cagiano.
Quanto a livros como a trilogia Cinquenta tons, ele acha que isso pode ser explicado pelo fato de o sistema editorial oscilar entre o mercado e a arte. Para Cagiano, “é preciso ganhar dinheiro com o lixo e fazer caixa para poder publicar o luxo”. Com o que concorda Marcelino Freire, para quem os livros eróticos atuais são uma brochada literária. “Já o Galera, creio, é jovem, vigoroso e muito mais potente”, provoca.
Barba ensopada de sangue
• De Daniel Galera
• Editora Companhia das Letras
• 424 páginas, R$ 39,50
ANÁLISE DA NOTÍCIA
Carlos Marcelo
Desde O filho eterno (2007), de Cristovão Tezza, a literatura brasileira contemporânea não conseguia ultrapassar os limites da autorreferência e atingir um público mais amplo. Em tempos de atenções dispersas pela oferta incessante de múltiplas opções culturais, a façanha de Daniel Galera com Barba ensopada de sangue torna-se ainda mais digna de nota. Claro que o forte investimento da editora, Companhia das Letras, foi decisivo para a visibilidade inicial, mas a profusão de comentários nas redes sociais nas últimas semanas mostra que o livro agora anda com as próprias pernas. Caiu no gosto de uma faixa de leitores interessados em uma aventura nada tradicional, que começa íntima e vai ganhando contornos de tensão até o desfecho arrebatador, marcado pelos embates com a natureza e com o próprio passado do protagonista. Com destreza narrativa e máximas ("Tudo que precisa ser conquistado dá problema depois") que começam a ser citadas aqui e ali, Barba… sacode panorama de longa e incômoda calmaria. Que o Brasil não demore outros cinco anos para gerar outra onda tão forte.
Nos anos 2000, outros livros nacionais seguiram enredo semelhante: os romances Perdas e ganhos, de 2003, da gaúcha Lya Luft, ficou por várias semanas entre os mais vendidos; e Dois irmãos, de 2000, de Milton Hatoum, teve o mérito, pela repercussão obtida entre a crítica, de colocar o escritor amazonense entre os principais nomes da literatura brasileira contemporânea.
Outro romance do mesmo período, Filho eterno, de 2007, do catarinense morador de Curitiba Cristovão Tezza, também deu o que falar. História autobiográfica, na qual o escritor, num tom comovente e maduro, narra sua complexa relação com o filho portador de síndrome de Down, o livro garantiu ao autor os mais importantes prêmios literários da temporada.
Para Noemi Jaffe, doutora em literatura brasileira pela USP e crítica literária, livros como Cinquenta tons de cinza são os que, provavelmente, vão dar o tom do cenário que está se configurando no universo literário. “Percebo os leitores aumentando, mas a qualidade diminuindo e acho que a tendência é piorar. Nesse sentido, vejo com bons olhos um fenômeno de vendas como está ocorrendo com Barba ensopada de sangue, embora não se compare aos Cinquenta tons, porque estimula uma leitura maciça, de qualidade”, pontua.
Autora de A verdadeira história do alfabeto, Noemi acha que Barba ensopada de sangue é até agora, o melhor livro de Daniel Galera, independentemente do fato de ter sido cercado por uma campanha midiática forte, com direito a três capas diferentes. “Certamente é um marco nesse sentido: da aposta em torná-lo o novo nome da literatura brasileira. Mas o livro é realmente bom, embora seja preciso esperar ainda bastante tempo para afirmar algo categórico”, diz. Da geração de Galera, que está sendo reconhecida, a professora cita escritores como Michel Laub, Fabrício Corsaletti, Angélica Freitas e Verônica Stigger. Para Noemi, é difícil dizer se esta geração já deixou sua marca: “Isso só o tempo irá falar”.
Já para o escritor e crítico Nelson Oliveira, que passou a assinar Luiz Braz, vários escritores brasileiros chamaram a atenção em 2012. Entre eles, destaca Angélica Freitas, com a coletânea de poemas Um útero é do tamanho de um punho; Luisa Greisler, com o romance Quiçá; e Daniel Galera, com Barba ensopada de sangue, na sua opinião um romance valioso e maduro. “Mas seria injusto com os outros afirmar que esse livro foi o principal lançamento do ano passado. Acredito que o próprio Daniel concordaria comigo, que seu romance pertence a uma interessante safra de títulos nacionais, todos muito bons”, afirma.
O pernambucano Marcelino Freire, companheiro de geração de Galera, acha que Barba ensopada de sangue é um marco na carreira do autor. “Ele está maduro, cada vez melhor. Leva a sério seu ofício. Lembro-me dele carregando caixas de livros nas costas, na Feira do Livro de Porto Alegre. Tenho orgulho de ter sido e estar sendo testemunha de tudo isso”, diz Marcelino.
Quem também está atento ao que se publica no país é o escritor e crítico mineiro Ronaldo Cagiano. Nascido em Cataguases, na Zona da Mata mineira, e atualmente vivendo em São Paulo, ele diz que a geração de escritores que surgiu dos anos de 1990 para cá – e à qual pertence Daniel Galera – se diferencia da dos anos de 1960/70, que produziu uma literatura caudatária do espírito de resistência, vanguardista e renovadora. Já os autores que vieram depois, segundo ele, pertencem a outra vertente, influenciados por momento distinto e pelos ícones da modernidade, beneficiados pelo ambiente da tecnologia e pelos fetiches da comunicação e cultura de massas. “São escritores menos ousados, alienados de um projeto mais crítico engajado, mas tendentes a uma literatura que agrade ao mercado”, diz Cagiano.
Quanto a Barba ensopada de sangue, o crítico reafirma a opinião de que o romance é um marco na carreira de Daniel Galera, não só por ter alcançado maturidade e segurança em sua arquitetura formal, mas pelo mergulho radical numa história tensa e densa. “É uma narrativa habilidosa e instigante, que vem consolidar o seu nome. Desde sua estreia em 2001, Daniel Galera, com seu estilo peculiar, vem só crescendo”, afirma Cagiano.
Quanto a livros como a trilogia Cinquenta tons, ele acha que isso pode ser explicado pelo fato de o sistema editorial oscilar entre o mercado e a arte. Para Cagiano, “é preciso ganhar dinheiro com o lixo e fazer caixa para poder publicar o luxo”. Com o que concorda Marcelino Freire, para quem os livros eróticos atuais são uma brochada literária. “Já o Galera, creio, é jovem, vigoroso e muito mais potente”, provoca.
Barba ensopada de sangue
• De Daniel Galera
• Editora Companhia das Letras
• 424 páginas, R$ 39,50
ANÁLISE DA NOTÍCIA
Carlos Marcelo
Desde O filho eterno (2007), de Cristovão Tezza, a literatura brasileira contemporânea não conseguia ultrapassar os limites da autorreferência e atingir um público mais amplo. Em tempos de atenções dispersas pela oferta incessante de múltiplas opções culturais, a façanha de Daniel Galera com Barba ensopada de sangue torna-se ainda mais digna de nota. Claro que o forte investimento da editora, Companhia das Letras, foi decisivo para a visibilidade inicial, mas a profusão de comentários nas redes sociais nas últimas semanas mostra que o livro agora anda com as próprias pernas. Caiu no gosto de uma faixa de leitores interessados em uma aventura nada tradicional, que começa íntima e vai ganhando contornos de tensão até o desfecho arrebatador, marcado pelos embates com a natureza e com o próprio passado do protagonista. Com destreza narrativa e máximas ("Tudo que precisa ser conquistado dá problema depois") que começam a ser citadas aqui e ali, Barba… sacode panorama de longa e incômoda calmaria. Que o Brasil não demore outros cinco anos para gerar outra onda tão forte.
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