sábado, 16 de fevereiro de 2013

Angelo Oswaldo de Araújo Santos - Vieira e o mito das minas‏

Já no século 17, o imperador da língua portuguesa advertia contra a malogro da mineração. O ouro brasileiro projetou a Inglaterra, enquanto Portugal e a América dividiram a escória 

Angelo Oswaldo de Araújo Santos
Estado de Minas: 16/02/2013 
Padre Antônio Vieira, óleo sobre tela de António José Nunes Júnior, 1868, Biblioteca Nacional de Portugal

 (Biblioteca Nacional de Portugal/Reprodução)
Padre Antônio Vieira, óleo sobre tela de António José Nunes Júnior, 1868, Biblioteca Nacional de Portugal
O padre Antônio Vieira, que morreu em 1697, quando se espalhavam mundo afora as notícias da opulência das minas finalmente achadas no Brasil, foi um dos maiores entusiastas da restauração do reino de Portugal, em 1640, e sonhava com as glórias de que os portugueses iriam novamente se cobrir. Vislumbrava o Quinto Império nas Cinco Quinas (as cinco chagas de Cristo) que se gravam no brasão lusitano, e acreditava que Deus jamais iria desfavorecer o reino catolicíssimo. Advertiu o próprio Criador, quando os “hereges” holandeses ocupavam o Nordeste brasileiro: “Quare obdormis, Domine?”. Por que dormes, Senhor? – perquiriu o Pai eterno, cobrando pressa na ajuda divina às armas de Portugal contra as de Holanda: “Exurge, quare obdormis?”. 

Assombroso orador sacro – “imperador da língua portuguesa”, segundo o poeta Fernando Pessoa – e hábil diplomata, não poderia imaginar que, em 1703, seu país iria assinar o Tratado de Methuen com a Inglaterra, pelo qual os ingleses ficaram com a maior parte do ouro das Minas Gerais, fragilizaram o poder de Lisboa e deram início à chamada Revolução Industrial. O sonho delirante do Padre Vieira acabou para sempre nesse acordo terrível. Mas um sermão de 1656 guarda o seu fabuloso vaticínio a respeito do malogro do ciclo do ouro no destino da metrópole.

Na verdade, ele previu o que iria ocorrer, cerca de meio século antes do advento do famoso manuscrito. Construiu original e instigante interpretação acerca do bom sucesso da mineração. No Sermão da Primeira Oitava da Páscoa, pregado na matriz de Belém do Pará, em 1656, Vieira confortou a decepção dos colonos ante a notícia do insucesso das expedições em busca de ouro na Região Amazônica, dizendo-lhes que “as minas, no caso em que se descobrissem, seriam de grande dano, em particular para este Estado”, sendo “que para o mesmo reino em geral antes haviam de ser de maior opressão e ruína, que de utilidade e aumento”. 

 “E para que comecemos pelos exemplos mais vizinhos” – argumentou Vieira – “que utilidades se têm seguido a Espanha do seu famoso Potosi e de outras minas desta mesma América? A mesma Espanha confessa e chora que lhe não têm servido mais que de a despovoar e empobrecer. Eles cavam e navegam a prata, e os estrangeiros a logram. Para os outros é a substância dos preciosos metais, e para eles a escória.”

Continuou o pregador: “Lá disse Isaías falando do Reino de Israel: Argentum tuum versum est in scoriam; e o mesmo se poderá dizer sem metáfora da prata de Espanha. Ainda com mais doméstica propriedade se lhe pode aplicar o dito do seu mesmo patrão Santiago. Argentum vestrum aeruginavit, pois a prata se lhe tem convertido em cobre, e a fama e opulência de tanto milhão, em belhão”.

Segundo o dicionário do velho Morais, belhão é “moeda de baixa lei, ou muita liga”. Com o irônico trocadilho, cifrou-se o futuro de Portugal. Não se pode negar que, da parte de Vieira, tenham faltado cuidados no sentido de preparar os portugueses para a auris sacra fames, a fome sagrada do ouro. Assim como a Espanha e sua prata do Alto Peru, Portugal viu o seu ouro passar a outros países, e o tratado de 1703 foi o grande instrumento de transferência da fortuna das Minas Gerais para os cofres de Londres.

A descoberta das minas gerais do ouro, no final do século 17, havia alvoroçado a vida portuguesa em momento crucial. Desde a restauração da monarquia lusitana pela casa de Bragança, Portugal sonhava com a riqueza que julgava ainda escondida no interior selvagem do Brasil, a exemplo do que havia sido reservado aos espanhóis, no Oeste do continente sul-americano. Com a responsabilidade de consolidar a independência, depois de 60 anos de domínio espanhol, o rei dom João IV sabia que, sem uma resposta positiva das entranhas brasileiras, o reino não teria como se firmar e ficaria à mercê de uma nova sujeição aos interesses insubmissos de Madri. Constrangido no finisterris da Península Ibérica, seria fatalmente devorado pela Espanha, caso não encontrasse tesouros no Brasil, já que se haviam rapidamente perdido os louros das conquistas inauguradas por Vasco da Gama no Oriente.

Empenhou-se o primeiro Bragança no sentido de incentivar a busca do ouro nos sertões do Brasil, estimulando sobretudo os paulistas à aventura. Aferrados ao apresamento de índios para venda como escravos nas plantações de cana e nos engenhos de açúcar do Nordeste, os paulistas desciam o Tietê no rumo do Rio Paraná, pelo qual alcançavam os territórios dos guaranis, retornando com levas de bugres (palavra que vem de búlgaros, tidos como bárbaros europeus) à vila fundada em 1554 pelos jesuítas exatamente para educar e proteger os indígenas. Sertanistas experimentados, a gente de São Paulo vai assim organizar caravanas, que ganham o nome de bandeiras. Os bandeirantes se arregimentaram não só na vila do colégio jesuíta, mas também nas povoações surgidas entre sesmarias no Vale do Rio Paraíba do Sul, o chamado Norte de São Paulo, como Taubaté, Pindamonhangaba e Guaratinguetá, de vez que a rota principal era precisamente a Serra da Mantiqueira, a grande muralha para além da qual se supunha estar o eldorado.

Da Bahia, subindo o São Francisco, o rio dos currais, na trilha dos rebanhos da Casa da Torre de Garcia d’Ávila, várias expedições se beneficiaram de apoio oficial, contando com o beneplácito da metrópole e do governo geral da colônia, sediado em Salvador. Foram as entradas. Algumas delas chegaram ao Norte do de Minas Gerais, sem êxito, contudo, quanto ao achamento do ouro. Isso só veio a ocorrer com a bandeira de Fernão Dias, que partiu de São Paulo em 1674, ultrapassou a Mantiqueira e acompanhou o Rio Paraopeba, afluente do São Francisco, pelo qual atingiu o Centro e o Norte de Minas.

Manuel Borba Gato, genro de Fernão Dias, afastou-se da bandeira no Sumidouro, perto de Lagoa Santa, e tomou a direção de uma grande montanha, a ita-beraba-açu indicada pelos índios, ou seja, a pedra brilhante grande. Na realidade, era o morro logo depois batizado como Serra da Piedade, que faz parte do belo horizonte da capital mineira e guarda, na ermida construída pelo português Antônio Bracarena, uma Pietà de Aleijadinho. O que brilhava era minério de ferro. Mas Borba Gato recolheu ouro da melhor qualidade na confluência do Rio Sabará com o Rio das Velhas (o Guaicuí, rio das tribos ancestrais). O arraial ali implantado ganhou o nome de Sabará, corruptela de itaberabaaçu e sabarabuçu.

Em 1696, a bandeira de Salvador Fernandes Furtado chegou ao Rio do Carmo, junto ao qual fundou a cidade de Mariana. Dois anos depois, os bandeirantes Antônio Dias de Oliveira e padre João de Faria Fialho descobriram a região do Ouro Preto, ouro excepcional, recoberto por uma camada negra de óxido de ferro. Em seguida, incontáveis grupos de desbravadores logo tornados garimpeiros multiplicaram arraiais pelo vasto território dos ricos aluviões. Invadiram o ivituruí, o Morro dos Ventos Frígidos ou Serro Frio, ao norte; Pitangui e Itapecerica, a oeste; Rio das Mortes, Sapucaí e Campanha, ao sul. O leste eram as Minas Gerais sem fim, até o Rio Casca, contidas pelas áreas proibidas dos sertões do Rio Doce, para que não houvesse saída para a capitania do Espírito Santo e seu porto.

Emboabas 

Milhares de pessoas se contaminaram com a febre do ouro, procedentes de São Paulo, Rio de Janeiro e Nordeste, além de Portugal, que teve receio de ver o reino despovoado em razão do excesso de imigrantes para as minas do Brasil. O ano de 1701 registrou grave desabastecimento e crescente tensão nas Minas, já que os moradores se entregaram à faina das bateias e abandonaram as plantações de milho que haviam garantido a longa jornada até o sítio da fortuna.

Em 1709, para viabilizar a presença do Estado português, foi criada a Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, cumprindo a promessa de dom João IV (1640-1656), mantida por dom Afonso V (1656-1668) e dom Pedro II (1668-1706), até a assunção de dom João V (1706-1750), de que a governança do território aurífero seria dada aos paulistas, caso o conquistassem. Isso provocou a Guerra dos Emboabas, que durou até 1720, uma vez que os paulistas entraram em conflito com portugueses, fluminenses, baianos e pernambucanos, pretendendo hegemonia total sobre as minas. Em 1711, foram criadas as três primeiras vilas de Minas Gerais, Mariana, Ouro Preto e Sabará, com suas câmaras municipais, pelo governador Antônio de Albuquerque, enquanto o rei mandava recolher e queimar os exemplares de Cultura e opulência do Brasil, publicado pelo jesuíta Antonil, em Lisboa, com todos os detalhes relativos ao itinerário que levava aos principais focos mineradores. 

Na mesma ocasião, o corsário francês Dugay-Trouin havia invadido e pilhado o Rio de Janeiro, o que fez Albuquerque descer o Caminho Novo com seis mil homens de armas para defender a cidade já arrasada e o acesso ao tesouro do Brasil. Mas em 1703, os ingleses já tinham entrado em cena e ficado com tudo.

A vida pareceu demasiadamente fácil, de uma hora para outra, quando os primeiros navios começaram a desembarcar os cofres de barras de ouro no porto de Lisboa. Era o milagre do fervor católico e da audácia dos bandeirantes, pelos quais se materializara, enfim, o desejo que descera da caravela de Cabral dois séculos antes, sem qualquer resposta imediata da selva e dos silvícolas. Portugal inundou-se de ouro, mas o país passou a se esvaziar. O Norte inteiro abandonou vinhedos e vinícolas, aldeias e vilas, correndo a Matosinhos rezar ao Senhor Bom Jesus antes da viagem apavorante pelo oceano em busca do paraíso dourado no meio de longínquas e altíssimas montanhas.

Teria fascinado os portugueses a possibilidade de venda direta de sua produção de vinho aos ingleses. Resolvido o problema comercial e garantidas as safras, o Norte não mais se evacuaria, pois a continuidade da produção poderia reter a população ensandecida pelos apelos das Minas Gerais. Portugal foi então o primeiro país a criar um passaporte para os nacionais que saíssem, a fim de controlar o êxodo (passaportes eram exigidos apenas na entrada e não na saída dos estados). Mas as terras propícias à agricultura foram assim direcionadas para a vitivinicultura, o que levou à escassez de alimentos e ao aumento dos preços e das importações.

O Tratado de Methuen é conhecido como o Tratado dos Panos e Vinhos, porque Portugal se comprometeu a comprar toda a produção têxtil inglesa para que a Inglaterra adquirisse a produção vinícola nacional. Firmado no reinado de dom Pedro III, três anos antes da chegada ao trono de dom João V, que morreu em 1750 como o Luís XIV lusitano, e vigente até 1836, suas três cláusulas concederam a franquia do mercado inglês aos vinhos de Portugal e a dos mercados portugueses aos tecidos da Inglaterra. Nas cláusulas secretas, ficou assegurado o domínio português na margem norte do Rio da Prata, a banda oriental onde havia sido fundada a cidade lusa de Colônia do Sacramento, mais tarde graças aos mesmos ingleses declarada República Oriental do Uruguai, uma espécie de amortecedor entre Brasil e Argentina. 

Como havia déficit no balanço de pagamentos em favor dos tecidos e manufaturados ingleses, o ouro de Minas Gerais cobriu a diferença e bancou o êxito da Revolução Industrial, financiando o progresso da Inglaterra. Dona Maria I mandou destruir as rocas de fiar disseminadas pelas Minas para que o pano inglês não perdesse mercado. O resto do ouro se foi. De acordo com a previsão do Padre Vieira, os portugueses ficaram com a escória, que continua a ser, três séculos depois, a cota parte dos mineiros do Brasil. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário