sábado, 16 de fevereiro de 2013

Da paixão à excelência ( Filarmônica de Minas Gerais) - Fabio Mechetti‏

Em cinco anos, a Filarmônica de Minas Gerais confirma sua vocação para o desenvolvimento da música clássica no estado, manifestação artística que indica o nível de emancipação social 

Fabio Mechetti
Estado de Minas: 16/02/2013 
Até hoje, não conheci um músico que tenha escolhido seguir carreira pelas recompensas materiais – o que não quer dizer que elas não sejam importantes. O reconhecimento do trabalho, por meio de compensação financeira, não deve ser desprezado. Temos, afinal, que batalhar e nos empenhar, constante e bravamente, para relembrar a todos que poucas profissões revelam-se tão estressantes, exigentes e singulares quanto a de músico de orquestra. 

Ao nos decidirmos pela profissionalização, sabemos dos inúmeros sacrifícios e dificuldades, pessoais e profissionais, inerentes à escolha. Mas existe um momento em que se torna evidente que outra opção não existe, e que esta é traçada pela paixão pela música e a certeza de que, sem ela, o mundo perderia o sentido e a beleza. 

É justamente essa paixão que nos impulsiona a investir em horas e horas de aulas e estudos – por vezes com alto investimento financeiro – e a suportar meses de distância do convívio familiar ou dos amigos. Somos também obrigados a abnegar atividades paralelas, que possam nos distrair dos objetivos finais.

Apesar de tudo isso, preciso ressaltar que as emoções não são as únicas definidoras da eventual escolha pela profissão. Aos sentimentos, une-se o imensurável fenômeno chamado talento. Habilidade natural? Herança genética? Aptidão excepcional? O talento individual é o ingrediente a alimentar músicos e musicistas ao longo de toda a sua trajetória.

Muitas pessoas talentosas, porém, não exercem completamente o potencial de suas aptidões especiais. O talento se apresenta – em quaisquer atividades – como ponto de partida e só desabrochará caso associado às oportunidades oferecidas e à prática intensa. Para músicos profissionais, muito mais importante será o esforço e a dedicação constante: nove em dez vezes, a disciplina ganhará do talento.

Quando se escolhe ser músico de orquestra, deve-se assumir o compromisso de usar o talento individual (ou coletivo) não como privilégio herdado, mas como uma responsabilidade artística, de transcendência, para com aqueles que nos escolhem ouvir, e, assim, têm suas vidas melhoradas. Por isso é imprescindível a postura profissional. Devo frisar, aliás, que minha filosofia sobre tal postura – hoje “praticada” por mim como diretor artístico e regente titular da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais – baseia-se em três pilares. 

O primeiro diz respeito às ideias de Aristóteles (384 a. C. – 322 a. C.). O maravilhoso no filósofo grego é que sua linha de pensamento mostra-se extremamente prática e aplicável ao dia a dia, munida de invejável utilitarismo. Em Ética, o pensador propõe que “toda a atividade humana é direcionada a uma finalidade simples, como objeto de um desejo universal humano, de algo que deva ser desfrutado e não como algo que deva ser simplesmente feito ou produzido”. Sua filosofia, pois, busca a felicidade, e não o cumprimento de obrigações. 

Devemos espelhar essa filosofia na procura pelo bem-estar. Se acreditamos que nosso ofício escolhido levará à felicidade, faz sentido trabalhar melhor, já que, só assim, seremos mais felizes. Aristóteles vai além, ao afirmar que “a felicidade é um tipo de funcionamento da alma em direção à excelência perfeita”. Portanto, a busca pela excelência, em tudo o que fazemos, representa, em última instância, o caminho da felicidade. 

O segundo pilar da postura de responsabilidade artística diz respeito ao caráter organizacional. Construí tal fundamento a partir da leitura de Good to great, livro de Jim Collins. A obra busca compreender por que certas empresas tornam-se grandes, e realizam todo o seu potencial, enquanto outras permanecem apenas como “boas” organizações. Na visão do autor, o “segredo” está, em primeiro lugar, na necessidade de se ter missão e visão bem definidas – e de não se deixar cair em tentações, como desvirtuar essa missão por sucesso ocasional ou diante de obstáculos “intransponíveis”. 

Segundo Collins, também é preciso cercar-se de pessoas que, além de competentes, dividam os mesmos ideais e a busca por excelência. Some-se a isso a promoção de uma cultura da disciplina – em que todos os envolvidos funcionem dentro de certa consciência harmoniosa de intenções, capazes de nortear a “visão final” – e o desenvolvimento de trabalho cotidiano.

O terceiro pilar a que me refiro talvez seja o mais importante de todos. E ele se baseia em um clássico da literatura universal: Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Escrita há mais de 400 anos, a obra-prima contém algo que define a função da arte, e, assim, o papel do artista. A “loucura” de Dom Quixote representa nossa constante luta, sempre motivada pelo idealismo. A grande arte e os grandes movimentos artísticos e estéticos não são os que, simplesmente, retratam ou contemplam a realidade, mas aqueles que tratam de modificá-la. 

Toda a filosofia de Dom Quixote resume-se em sugerir que não há maior loucura do que ver o mundo como ele é, e não como deveria ser. As aventuras do velho cavaleiro andante são responsáveis pela experimentação de novas propostas, pelo traçado de novos caminhos. Além disso, alguns dos mais importantes valores humanos – mesmo que “produzidos” por uma mente aparentemente doentia – são prontamente resgatados por meio das peripécias do famoso personagem magistralmente criado por Cervantes.

Inesquecível 

Em rápida analogia, essa vem a ser nossa função, enquanto músicos, a cada concerto: transformar aquele momento de vida das pessoas em algo melhor do que outra experiência lhes pudesse oferecer. Essa é a filosofia artística capaz de justificar a existência de orquestras sinfônicas e de organizações culturais similares. Orquestras não existem para, forçosamente, dar emprego a músicos, mas sim para que – por meio do emprego de talento, disciplina e excelência – a existência de todos nós, dos dois lados do palco, seja não somente inesquecível, mas também, e principalmente, indispensável. 

Criada e administrada, desde 21 de fevereiro de 2008, segundo os três pilares nos quais acredito, a Filarmônica de Minas Gerais é, certamente, um dos únicos projetos mundiais de orquestra sinfônica no início do século 21. Ao mesmo tempo em que observamos, nos países da Europa e da América do Norte – onde a cultura segue tradição relativamente contínua de desenvolvimento da música clássica, em geral, e sinfônica, em particular –, um declínio acentuado na quantidade de orquestras e no volume de público, vemos, no Brasil e em Minas Gerais, uma ousada e visionária ação, que recupera o interesse pela instituição sinfônica e investe na certeza de que expressões culturais e artísticas de alta qualidade têm papel expressivo no processo de emancipação social. 

Com grande alegria e entusiasmo, percebemos que, desde sua criação, a filarmônica constrói um público cada vez maior, não só em Belo Horizonte, mas também no interior do estado e, até mesmo, no Brasil. Sem concessões, buscamos oferecer o melhor possível, em termos de repertório, de solistas etc., sempre a acreditar na força emocional da música de alta qualidade. O repertório sinfônico essencial é garantido na programação, mas ela sempre vai além de obras e estilos já conhecidos do grande público, pois acreditamos que nosso papel é também o de mostrar todas as possibilidades da criação musical de qualidade. O público – tanto aquele que comparece ao Palácio das Artes quanto o que nos prestigia nas outras apresentações – percebe algo especial e nos responde com aplausos, apoio e encorajamento. Eis a justificativa de nosso trabalho e de nossa existência.

Essa rara chance de, há cinco anos, ter começado uma orquestra praticamente do zero revelou-se, para além do enorme desafio, a oportunidade, singularíssima, para que pudéssemos fazer a diferença, em busca da excelência sinfônica, com músicos e musicistas comprometidos e talentosos. Dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, continuamos a lutar – com a paixão que nutrimos pela música – para que possamos sempre oferecer espetáculos inesquecíveis – e, até mesmo, indispensáveis.
 
* Fabio Mechetti é diretor artístico e regente titular da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.

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